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D.Quixote de La Mancha - Unama

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www.nead.unama.br<br />

— Senhor, este cavalheiro que aqui está (e mostrou-lhe um homem grave, <strong>de</strong><br />

boa aparência e <strong>de</strong> bom porte) traduziu um livro toscano na nossa língua castelhana<br />

e eu estou-o compondo, para o dar à estampa.<br />

— Qual é o título do livro? — perguntou D. <strong>Quixote</strong>.<br />

— O livro chama-se Le Bagatelle — respon<strong>de</strong>u o tradutor.<br />

— E que quer dizer Bagatelle? — perguntou D. <strong>Quixote</strong>.<br />

— Bagatelle — tornou o tradutor — quer dizer "bagatelas"; e, ainda que o livro<br />

é humil<strong>de</strong> <strong>de</strong> nome, contém e encerra em si coisas ótimas e substanciais.<br />

— Eu — disse D. <strong>Quixote</strong> — sei alguma coisa <strong>de</strong> toscano e gabo-me <strong>de</strong><br />

cantar algumas estâncias <strong>de</strong> Ariosto. Mas diga-me Vossa Mercê, senhor meu (e não<br />

digo isto porque queira examinar o merecimento <strong>de</strong> Vossa Mercê, mas por<br />

curiosida<strong>de</strong> e nada mais): Encontrou alguma vez a palavra pignata?<br />

— Decerto, muitas vezes — respon<strong>de</strong>u o tradutor.<br />

— E como é que Vossa Mercê a traduz?<br />

— Como a havia <strong>de</strong> traduzir senão por panela?<br />

— Corpo <strong>de</strong> tal — tornou D. <strong>Quixote</strong> — como Vossa Mercê conhece a fundo o<br />

idioma toscano! Sou capaz <strong>de</strong> apostar em como, quando em toscano se diz piace,<br />

diz Vossa Mercê praz ou agrada, e on<strong>de</strong> dizem piú diz mais, e ao sú chama acima, e<br />

ao giú chama abaixo.<br />

— Isso sem dúvida alguma — tornou o tradutor — porque são esses os seus<br />

verda<strong>de</strong>iros significados.<br />

— Atrevo-me a jurar — tornou D. <strong>Quixote</strong> — que não é Vossa Mercê<br />

conhecido nesse mundo, inimigo sempre <strong>de</strong> premiar os floridos engenhos e os<br />

louváveis trabalhos. Que talentos aí há perdidos! que engenhos metidos ao canto!<br />

quantas virtu<strong>de</strong>s menosprezadas! mas, com tudo isso, parece-me que traduzir duma<br />

língua para outra, não sendo das rainhas das línguas grega e latina, é ver panos <strong>de</strong><br />

rás pelo avesso que, ainda que se vêem as figuras, vêem-se cheias <strong>de</strong> fios que as<br />

escurecem, e não se vê a lisura e cor do direito; e o traduzir <strong>de</strong> línguas fáceis não<br />

prova engenho nem elocução, como o não prova quem traslada, nem quem copia<br />

um papel <strong>de</strong> outro papel; e daqui não quero inferir que não seja louvável este<br />

exercício das traduções, porque em outras coisas piores, e que menos proveito lhe<br />

trouxessem, se podia ocupar o homem. Estão fora <strong>de</strong>sta conta os nossos dois<br />

famosos tradutores, Cristóvão <strong>de</strong> Figueiroa, no seu Pastor Fido, e D. Juan <strong>de</strong><br />

Jaurégui no seu Aminta, em que facilmente se fica em dúvida sobre qual é a<br />

tradução e qual o original. Mas diga-me Vossa Mercê: este livro imprime-se por sua<br />

conta, ou já ven<strong>de</strong>u o privilégio a algum livreiro?<br />

— Imprimo-o por minha conta — respon<strong>de</strong>u o tradutor — e conto ganhar mil<br />

ducados, pelo menos, com esta primeira edição, que há-<strong>de</strong> ser <strong>de</strong> dois mil<br />

exemplares, e se hão-<strong>de</strong> ven<strong>de</strong>r a seis reais cada um, por dá cá aquela palha.<br />

— Muito enganado está Vossa Mercê — respon<strong>de</strong>u D. <strong>Quixote</strong> — e bem se<br />

vê que não conhece as entradas e saídas dos impressores e as correspondências<br />

que há <strong>de</strong> uns com outros. Eu lhe juro que, quando se vir com dois mil exemplares<br />

às costas, há-<strong>de</strong> se sentir <strong>de</strong>veras moído, principalmente se o livro não for picante.<br />

— Pois quê! — disse o tradutor — quer Vossa Mercê que eu o vá dar a um<br />

livreiro por três maravedis, e que ainda ele pense que me faz favor em mos dar? Eu<br />

não imprimo os meus livros para alcançar famas no mundo, que já sou bastante<br />

conhecido pelas minhas obras; quero proveito, que, sem ele, nada vale a boa fama.<br />

— Deus lhe dê ventura — respon<strong>de</strong>u D. <strong>Quixote</strong>.<br />

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