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D.Quixote de La Mancha - Unama

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www.nead.unama.br<br />

ouvir; mostrou-me a casa, e me referiu quanto no <strong>de</strong>sposório suce<strong>de</strong>ra, coisa tão<br />

falada, que por toda a parte se faziam conventículos, em que se não tratava doutra<br />

coisa. Disse-me que na noite do casamento <strong>de</strong> D. Fernando com D. Lucinda, <strong>de</strong>pois<br />

<strong>de</strong>la ter proferido o sim, lhe tinha dado um rijo <strong>de</strong>smaio, e que, chegando o marido a<br />

<strong>de</strong>satacar-lhe o peito para lhe dar o ar, lhe achou um papel escrito do próprio punho<br />

<strong>de</strong>la, em que <strong>de</strong>clarava que não podia ser esposa <strong>de</strong> D. Fernando, porque já o era<br />

<strong>de</strong> Cardênio, que, segundo o homem me disse, era um cavaleiro mui principal da<br />

mesma cida<strong>de</strong>, e que se havia dado o sim a D. Fernando, fora por sujeição a seus<br />

pais. Em suma, tais razões disse conterem-se no papel, que bem se entendia que a<br />

intenção <strong>de</strong>la tinha sido <strong>de</strong> matar-se logo após o ato do <strong>de</strong>sposório, e ali mesmo<br />

dava os porquês do seu suicídio. Dizem que a verda<strong>de</strong> <strong>de</strong> tudo aquilo se confirmou<br />

por lhe terem achado uma daga oculta no vestido, não sei on<strong>de</strong>. Presenciado tudo<br />

aquilo por D. Fernando, este, por enten<strong>de</strong>r que Lucinda o havia burlado e<br />

escarnecido, arremeteu a ela ainda <strong>de</strong>smaiada, e com a mesma daga que lhe<br />

acharam a quis atravessar; e fá-lo-ia, se os pais e mais pessoas presentes o não<br />

estorvassem. Mais disseram que D. Fernando <strong>de</strong>saparecera logo dali, e que D.<br />

Lucinda não tornara em si até ao outro dia, e que então contara a seus pais que era<br />

verda<strong>de</strong>ira esposa do sobredito Cardênio. Soube, além disso, que ele, o Cardênio,<br />

assistira, segundo se dizia, àquele tremendo <strong>de</strong>sposório, e vendo-a casada (o que<br />

ele nunca imaginara) saiu da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sesperado, <strong>de</strong>ixando-lhe uma carta em que<br />

explicava a Lucinda o agravo que lhe havia feito, e que ele se ia para on<strong>de</strong> nunca<br />

mais alguém o visse. Tudo isto era público e notório. Ninguém falava doutra coisa, e<br />

mais vieram a falar ainda, quando se espalhou que Lucinda tinha <strong>de</strong>saparecido da<br />

casa paterna e da povoação, pois em parte nenhuma <strong>de</strong>ram com ela, coisa <strong>de</strong> que<br />

seus pais andavam loucos, sem saberem que fizessem para a recobrarem. Estas<br />

novas que recebi afugentaram <strong>de</strong> todo as minhas esperanças, e tive por melhor o<br />

não haver achado a D. Fernando, que se o achasse casado, por me parecer que<br />

assim não era <strong>de</strong> todo impossível a minha reparação. Chegou-se-me a figurar que<br />

talvez o céu tivesse posto aquele impedimento ao segundo matrimônio, para lhe dar<br />

ocasião <strong>de</strong> conhecer o que ao primeiro <strong>de</strong>via, e a cair na conta <strong>de</strong> que era cristão, e<br />

que mais <strong>de</strong>via à sua alma que aos respeitos humanos. Tudo isto revolvia eu na<br />

fantasia, supondo em vão consolar-me com umas esperanças remotas e<br />

<strong>de</strong>smaiadas para alimento da vida que já aborreço. Ora conservando-me eu ainda<br />

na cida<strong>de</strong> sem saber que fizesse, pois não achava a D. Fernando, chegou aos meus<br />

ouvidos um pregão público, prometendo um gran<strong>de</strong> prêmio a quem me achasse,<br />

dando os sinais da minha ida<strong>de</strong> e do meu trajar; e ouvi que se dizia ter-me tirado <strong>de</strong><br />

casa <strong>de</strong> meus pais o moço que me acompanhara, coisa que me feriu no íntimo, por<br />

ver quão <strong>de</strong>caído me andava já o crédito. Não bastava a minha fuga, faltava-me<br />

para raptor um homem tão baixo e tão pouco merecedor das minhas atenções. Logo<br />

que tal pregão ouvi, pus-me fora da cida<strong>de</strong> com o meu servo, que já principiava a<br />

dar mostras <strong>de</strong> titubear na lealda<strong>de</strong> prometida, e nessa mesma noite entramos pela<br />

espessura <strong>de</strong>ste monte para não sermos achados. Mas bem dizem que um mal<br />

nunca vem só, e que o fim <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>sgraça é princípio <strong>de</strong> outra maior. Assim me<br />

suce<strong>de</strong>u a mim, porque o bom do meu criado, homem até então fiel e seguro, assim<br />

que me viu naquela solidão, mais incitado da sua velhacaria que da minha<br />

formosura, quis aproveitar a oportunida<strong>de</strong> que ao seu parecer lhe <strong>de</strong>paravam estes<br />

ermos; e sem resguardo <strong>de</strong> vergonha, nem temor <strong>de</strong> Deus, nem respeito à minha<br />

pessoa, me requestou. Desenganado com as minhas respostas injuriosas e justas<br />

aos seus <strong>de</strong>savergonhados projetos, <strong>de</strong>ixou-se das rogativas por on<strong>de</strong> havia<br />

começado e passou a empregar a força. O céu, porém, que poucas vezes <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong><br />

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