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D.Quixote de La Mancha - Unama

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www.nead.unama.br<br />

quem há no mundo que se possa gabar <strong>de</strong> ter penetrado o confuso pensamento e<br />

mudável condição duma mulher? Ninguém <strong>de</strong>certo. Assim que Lucinda me viu,<br />

disse-me: — "Cardênio, achas-me vestida <strong>de</strong> noiva, já me estão esperando na sala<br />

D. Fernando, o tredo, meu pai, o ambicioso, e outras testemunhas que mais<br />

<strong>de</strong>pressa o hão-<strong>de</strong> ser da minha morte, que <strong>de</strong> semelhante enlace. Não te<br />

perturbes, querido, mas procura achar-te presente a este sacrifício; se eu o não<br />

pu<strong>de</strong>r impedir com as minhas razões, uma daga levo oculta, que triunfará das<br />

violências mais resolutas, dando fim à minha vida, e evi<strong>de</strong>nciará a firmeza que te<br />

guar<strong>de</strong>i e conservo até ao fim." Respondi-lhe confuso e à pressa, por temer me<br />

faltasse o tempo para lhe respon<strong>de</strong>r: "Senhora, façam vossas obras sair verda<strong>de</strong>iras<br />

essas palavras; se levas daga para teu crédito, espada levo eu também para com<br />

ela te <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r, ou para me arrancar a vida, se a sorte contra mim se <strong>de</strong>clarar."<br />

Creio que ela não chegou a ouvir-me tudo, porque senti que a chamavam à pressa,<br />

porque o noivo estava esperando. Com isto se fechou a noite da minha tristeza,<br />

tramontou o sol da minha felicida<strong>de</strong>, perdi o lume dos olhos e do entendimento. Não<br />

acertava para entrar em casa <strong>de</strong>la, nem mover-me podia. Consi<strong>de</strong>rando porém<br />

quanto a minha presença era necessária para o que no caso po<strong>de</strong>ria suce<strong>de</strong>r,<br />

animei-me o mais que pu<strong>de</strong>, e penetrei. Como conhecia bem todas as entradas e<br />

saídas, com o alvoroto que lá por <strong>de</strong>ntro ia, ninguém reparou em mim, e tive modo<br />

<strong>de</strong> me colocar no vão duma janela da mesma sala, cortinada <strong>de</strong> tapeçarias, por<br />

entre as quais podia, sem ser visto, <strong>de</strong>scobrir quanto se passasse. Quem po<strong>de</strong>ria<br />

agora dizer os sobressaltos <strong>de</strong>ste coração enquanto ali me conservei? Os<br />

pensamentos que me ocorreram? As consi<strong>de</strong>rações que fiz, que foram tantas e tais,<br />

que nem se po<strong>de</strong>m referir nem é bem que se refiram? Basta que saibais que o noivo<br />

entrou na sala sem mais compostura que o seu trajo do costume. Vinha-lhe por<br />

padrinho um primo co-irmão <strong>de</strong> Lucinda, e em toda a sala não havia pessoa <strong>de</strong> fora,<br />

senão os criados da casa. Dentro em pouco saiu duma câmara Lucinda,<br />

acompanhada da mãe e <strong>de</strong> duas donzelas suas, tão bem a<strong>de</strong>reçada e composta,<br />

como à sua qualida<strong>de</strong> e formosura competia, sendo ela o extremo da gala e bizarria<br />

cortesã. O meu enlevo não me <strong>de</strong>ixou notar o que trazia vestido; só pu<strong>de</strong> ver que as<br />

cores eram encarnado e branco, reluzindo a pedraria e jóias do toucado e <strong>de</strong> todo o<br />

vestuário, e realçando por cima <strong>de</strong> tudo a beleza singular <strong>de</strong> seus louros cabelos;<br />

tais brilhavam eles sem competência com as pedras preciosas e com as luzes <strong>de</strong><br />

quatro tochas que na sala estavam, que ainda se lhes avantajavam. Ah! memória<br />

mortal, perturbadora do meu <strong>de</strong>scanso! para que serve estares-me lembrando agora<br />

a incomparável lin<strong>de</strong>za daquela adorada inimiga? Não será melhor que me<br />

representes, ó memória cruel, o que ela então fez, para que, incitado <strong>de</strong> tão<br />

manifesto agravo, procure, já que não po<strong>de</strong> ser a vingança, ao menos o morrer? Não<br />

vos canseis, senhores, <strong>de</strong> me ouvir estas digressões, pois não é a minha pena das<br />

que po<strong>de</strong>m e <strong>de</strong>vem contar-se sucintamente; cada circunstância <strong>de</strong>la me parece<br />

digna dum largo discurso.<br />

A isto lhe respon<strong>de</strong>u o cura que não só se não cansavam <strong>de</strong> ouvi-lo, senão<br />

que muito sabor achavam naquelas mesmas minudências, por serem tais, que não<br />

mereciam ser <strong>de</strong>ixadas em silêncio, sendo tão dignas <strong>de</strong> atenção como o principal<br />

da narrativa.<br />

— Digo pois — prosseguiu Cardênio — que, estando todos na sala, entrou o<br />

cura da freguesia, e tomando aos dois pela mão, para fazer o que em tal ato se<br />

requer, ao dizer: "Quereis, senhora Lucinda, ao senhor D. Fernando aqui presente,<br />

para vosso legítimo esposo, como manda a Santa Madre Igreja?" Eu lancei a cabeça<br />

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