15.04.2013 Views

D.Quixote de La Mancha - Unama

D.Quixote de La Mancha - Unama

D.Quixote de La Mancha - Unama

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

www.nead.unama.br<br />

Por tudo isto, acabaram os ouvintes <strong>de</strong> se inteirar da falta <strong>de</strong> juízo <strong>de</strong> D.<br />

<strong>Quixote</strong>, e da espécie <strong>de</strong> loucura que o dominava; do que os tomou a mesma<br />

admiração, que a todos os que pela primeira vez a presenciavam.<br />

Vivaldo, que era sujeito mui discreto, e <strong>de</strong> gênio alegre, para suavizar o fastio<br />

do pouco espaço que diziam lhes restava ainda para andar até à serra da sepultura,<br />

quis dar-lhe ocasião para que levasse por diante os seus <strong>de</strong>satinos, e disse-lhe:<br />

— Parece-me, senhor cavaleiro, que a profissão <strong>de</strong> Sua Mercê é das mais<br />

apertadas que há no mundo; e persuado-me <strong>de</strong> que nem a dos fra<strong>de</strong>s cartuxos é tão<br />

rigorosa.<br />

— Tão rigorosa talvez que o seja — respon<strong>de</strong>u o nosso D. <strong>Quixote</strong> — porém<br />

tão necessária, duvido muito; porque, se se há-<strong>de</strong> dizer toda a verda<strong>de</strong>, não faz<br />

menos o soldado que executa o que lhe manda o capitão, do que o próprio capitão,<br />

que lho or<strong>de</strong>na. Venho a dizer que os religiosos, com toda a paz e sossego, pe<strong>de</strong>m<br />

ao céu o bem da terra; e nós, os soldados e cavaleiros, executamos o que eles só<br />

requerem, porque a <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>mos com o valor do nosso braço, e ao fio da nossa<br />

espada, não <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> teto, mas em campo <strong>de</strong>scoberto, oferecidos em alvo aos<br />

insofridos raios do sol do verão, e aos arrepiados gelos do inverno. Deste modo,<br />

somos ministros <strong>de</strong> Deus na terra, e braço pelo qual se executa no mundo a sua<br />

justiça. E como as coisas da guerra, e as concernentes a elas, não se po<strong>de</strong>m pôr em<br />

execução senão suando, cansando, e trabalhando excessivamente, segue-se que<br />

os que a professam têm sem dúvida maior trabalho que os outros, que em<br />

sossegada paz estão pedindo a Deus que favoreça aos que po<strong>de</strong>m pouco. Não<br />

quero eu dizer (nem pelo pensamento me passa) que é tão bom estado o <strong>de</strong><br />

cavaleiro andante, como o <strong>de</strong> religioso na sua clausura; só quero inferir que isto que<br />

eu pa<strong>de</strong>ço é sem comparação mais trabalhoso e aperreado, mais faminto e se<strong>de</strong>nto,<br />

miserável, roto, e bichoso, pois é certíssimo que os cavaleiros andantes passados<br />

contavam muitas aventuras ruins no <strong>de</strong>curso <strong>de</strong> suas vidas, e, se alguns chegavam<br />

a ser Imperadores, pelo esforço do seu braço, à fé que bastante suor e sangue lhes<br />

custou; e se àqueles, que a tais graus subiram, houvessem faltado encantadores e<br />

sábios para os ajudarem, bem <strong>de</strong>fraudados teriam ficado <strong>de</strong> suas esperanças.<br />

— Desse parecer também eu sou — disse o caminhante — mas há uma<br />

coisa, entre outras muitas, que me <strong>de</strong>stoa da boa razão nos cavaleiros andantes; e<br />

é, que, vendo-se em ocasião <strong>de</strong> cometerem uma gran<strong>de</strong> e perigosa aventura, em<br />

que a vida lhes vai num fio, nunca nesses apurados lances se lembram <strong>de</strong><br />

encomendar-se a Deus, como qualquer outro cristão; a que se encomendam é às<br />

suas damas, com tanta ânsia e <strong>de</strong>voção, como se o Deus fossem elas; o que para<br />

mim cheira o seu tanto a coisas <strong>de</strong> pagão.<br />

— Senhor meu — disse D. <strong>Quixote</strong> — isso é que por maneira nenhuma po<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser assim; e mal iria ao cavaleiro andante que outra coisa fizesse. Isto é já<br />

uso autorizado, e posse velha na cavalaria andantesca; a saber: que, se o cavaleiro<br />

andante, ao acometer algum gran<strong>de</strong> feito <strong>de</strong> armas, tivesse a sua senhora diante,<br />

poria nela os olhos branda e amorosamente, como pedindo-lhe que o favorecesse<br />

no duvidoso transe em que se ia empenhar; e, ainda que ninguém o ouvisse, estaria<br />

obrigado a proferir palavras entre <strong>de</strong>ntes, com as quais <strong>de</strong> todo o coração se lhe<br />

encomendasse; do que vemos inumeráveis exemplos nas histórias. Não se há-<strong>de</strong><br />

enten<strong>de</strong>r por isto que hão-<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> encomendar-se a Deus, que tempo e lugar<br />

lhes ficam para o fazerem no <strong>de</strong>curso do conflito.<br />

— Seja assim — respon<strong>de</strong>u o outro — mas ainda me fica um escrúpulo.<br />

Muitas vezes tenho lido que se travam ditos entre dois andantes cavaleiros, que <strong>de</strong><br />

51

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!