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D.Quixote de La Mancha - Unama

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www.nead.unama.br<br />

— O mesmo digo eu — respon<strong>de</strong>u Sancho — quem a viu e quem a vê! qual é<br />

o coração que não chora com transformação semelhante?<br />

— Isso não po<strong>de</strong>s tu dizer, Sancho — redarguiu D. <strong>Quixote</strong> — pois que a<br />

contemplaste na cabal plenitu<strong>de</strong> da sua formosura, que o encanto não se esten<strong>de</strong>u<br />

a turbar-te a vista, nem a encobrir-te os seus atrativos; contra mim só e contra os<br />

meus olhos se dirige a força do seu veneno; mas, com tudo isso, reparei, Sancho,<br />

numa coisa, e é que me pintaste mal a sua beleza, porque, se bem me lembra,<br />

disseste-me que tinha os olhos <strong>de</strong> pérolas, e os olhos que parecem pérolas são mais<br />

<strong>de</strong> besugo que <strong>de</strong> dama; e, segundo creio, os <strong>de</strong> Dulcinéia <strong>de</strong>vem ser <strong>de</strong> ver<strong>de</strong>s<br />

esmeraldas, rasgados, com dois arcos celestiais que lhes servem <strong>de</strong> pestanas; e<br />

essas pérolas tira-as dos olhos e passa-as para os <strong>de</strong>ntes, que sem dúvida tomaste<br />

uma coisa por outra.<br />

— Po<strong>de</strong> ser — respon<strong>de</strong>u Sancho — porque fiquei tão turbado com a sua<br />

formosura, como Vossa Mercê com a sua fealda<strong>de</strong>; mas encomen<strong>de</strong>mos tudo a<br />

Deus, que Ele é que é o sabedor das coisas que hão-<strong>de</strong> suce<strong>de</strong>r neste vale <strong>de</strong><br />

lágrimas, neste <strong>de</strong>sgraçado mundo em que estamos, on<strong>de</strong> mal se encontram objetos<br />

que não tenham mescla <strong>de</strong> malda<strong>de</strong>, embuste, ou velhacaria. Uma coisa me pesa,<br />

senhor meu, mais do que todas as outras, e é pensar o que se há-<strong>de</strong> fazer quando<br />

Vossa Mercê <strong>de</strong>rrotar algum gigante, ou outro cavaleiro, e lhe mandar que se<br />

apresente diante da formosura da senhora Dulcinéia; on<strong>de</strong> a há-<strong>de</strong> encontrar esse<br />

pobre gigante ou esse mísero cavaleiro vencido? Parece-me que os estou a ver a<br />

andar por esse Toboso, feitos uns basbaques, procurando a senhora Dulcinéia, e,<br />

ainda que a encontrem no meio da rua, conhecendo-a tanto como conheceriam meu<br />

pai.<br />

— Talvez, Sancho — respon<strong>de</strong>u D. <strong>Quixote</strong> — o encantamento não chegue a<br />

ponto <strong>de</strong> fazer com que os gigantes e cavaleiros rendidos não vejam a Dulcinéia; e,<br />

com o primeiro que eu vencer, faremos a experiência, or<strong>de</strong>nando-lhe que volte a<br />

dar-me notícia do que a esse respeito lhe houver sucedido.<br />

— Parece-me muito bem o que Vossa Mercê diz — redarguiu Sancho — e<br />

com esse artifício conheceremos o que <strong>de</strong>sejamos; e se ela só a Vossa Mercê se<br />

encobre, será a <strong>de</strong>sgraça mais para Vossa Mercê do que para ela; mas tenha a<br />

senhora Dulcinéia saú<strong>de</strong> e contentamento, nós por cá passaremos o melhor que<br />

pu<strong>de</strong>rmos, buscando as nossas aventuras e <strong>de</strong>ixando que o tempo faça das suas,<br />

que ele é o melhor médico <strong>de</strong> enfermida<strong>de</strong>s ainda maiores.<br />

Queria D. <strong>Quixote</strong> respon<strong>de</strong>r a Sancho, mas estorvou-lho uma carreta que se<br />

atravessou no caminho, cheia das pessoas e figuras mais estranhas e diversas que<br />

imaginar-se po<strong>de</strong>m. O que guiava as mulas e servia <strong>de</strong> carreiro era um feio<br />

<strong>de</strong>mônio. A carreta era <strong>de</strong>scoberta, sem toldo. A primeira figura que D. <strong>Quixote</strong> viu<br />

foi a da própria morte, com rosto humano; junto <strong>de</strong>la vinha um anjo com gran<strong>de</strong>s e<br />

pintadas asas; dum lado estava um imperador, com uma coroa, que parecia <strong>de</strong> ouro,<br />

na cabeça; aos pés da morte vinha o <strong>de</strong>us que chamam Cupido, sem venda nos<br />

olhos, mas com o seu arco, aljava e setas; vinha também um cavaleiro armado <strong>de</strong><br />

ponto em branco, mas sem morrião, nem celada, e em vez disso um chapéu cheio<br />

<strong>de</strong> plumas <strong>de</strong> diversas cores; vinham com estas outras pessoas <strong>de</strong> diferentes rostos<br />

e trajos. Tudo isto, aparecendo <strong>de</strong> repente, alvorotou até certo ponto D. <strong>Quixote</strong> e<br />

assustou Sancho; mas logo D. <strong>Quixote</strong> se alegrou, julgando que se lhe oferecia nova<br />

e perigosa aventura; e com este pensamento e ânimo, disposto a acometer qualquer<br />

perigo, pôs-se diante da carreta, e disse em voz alta e ameaçadora:<br />

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