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D.Quixote de La Mancha - Unama

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www.nead.unama.br<br />

— A causa <strong>de</strong>ssa dor — disse D. <strong>Quixote</strong> — é sem dúvida que, como te<br />

bateram com um pau largo e comprido, apanhou-te as espáduas todas, on<strong>de</strong> entram<br />

essas partes que te doem, e, se mais te apanhasse, mais te doera.<br />

— Por Deus — disse Sancho — Vossa Mercê tirou-me realmente <strong>de</strong> uma<br />

gran<strong>de</strong> dúvida e explicou-ma em lindos termos! Corpo <strong>de</strong> tal; tão encoberta estava a<br />

causa da minha dor, que fosse necessário dizer-me que me dói tudo quanto o<br />

varapau apanhou? Se me doessem os <strong>de</strong>ntes, ainda se percebia que se cismasse<br />

no motivo por que me doíam; mas doerem-me os sítios que me <strong>de</strong>sancaram, não é<br />

caso <strong>de</strong> pasmar. Por minha fé, senhor meu amo, pouco dói o mal alheio, e eu todos<br />

os dias vou vendo o pouco que <strong>de</strong>vo esperar da companhia em que tenho andado;<br />

porque, se <strong>de</strong>sta vez me <strong>de</strong>ixou espancar, outras vezes voltaremos aos<br />

manteamentos, e a outras brinca<strong>de</strong>iras, que hoje foram pagas pelas costelas e<br />

amanhã o serão pelos olhos. Muito melhor faria eu (se não quiser ser um bárbaro<br />

toda a minha vida), muito melhor faria eu, torno a dizer, se voltasse para minha casa,<br />

para minha mulher e para os meus filhos, para a sustentar e para os criar com o que<br />

Deus for servido dar-me, em vez <strong>de</strong> andar atrás <strong>de</strong> Vossa Mercê por caminhos e<br />

encruzilhadas, bebendo mal e comendo pior. Pois enquanto ao dormir? Tomai aí,<br />

escu<strong>de</strong>iro mano, sete palmos <strong>de</strong> terra, e, se quiser<strong>de</strong>s mais, tomai outros tantos, que<br />

isso está na vossa mão, e estiraçai-vos à vossa vonta<strong>de</strong>! Queimado veja eu e feito<br />

em pó o primeiro que <strong>de</strong>u começo à cavalaria andante, ou pelo menos o primeiro<br />

que quis ser escu<strong>de</strong>iro <strong>de</strong> semelhantes tontos, como haviam <strong>de</strong> ser os tais passados<br />

cavaleiros; dos presentes não digo nada, que por ser Vossa Mercê um <strong>de</strong>les, tenholhes<br />

respeito, e porque sei que Vossa Mercê ainda sabe mais do que o diabo, em<br />

tudo o que diz e pensa.<br />

— Eu era capaz <strong>de</strong> fazer uma aposta contigo, Sancho — disse D. <strong>Quixote</strong> —<br />

em como te não dói nada em todo o corpo, agora que estás falando sem que<br />

ninguém te vá à mão. Dize, meu filho, tudo o que te vier ao pensamento e à boca,<br />

que só para te não doer nada terei eu gosto em suportar o enfado que me dão as<br />

tuas impertinências; e, se <strong>de</strong>sejas voltar para tua casa, para tua mulher e teus filhos,<br />

não serei eu que to impeça; tens dinheiros meus; vê há quanto tempo saímos da<br />

nossa al<strong>de</strong>ia <strong>de</strong>sta terceira vez, vê o que <strong>de</strong>ves ganhar mensalmente, e paga-te da<br />

tua mão.<br />

— Quando eu servia Tomé Carrasco, o pai do bacharel Sansão Carrasco, que<br />

Vossa Mercê muito bem conhece, ganhava dois ducados cada mês, fora a comida;<br />

com Vossa Mercê não sei o que posso ganhar, mas o que sei é que tem muito mais<br />

trabalho o escu<strong>de</strong>iro <strong>de</strong> um cavaleiro andante, do que o que serve a um lavrador;<br />

que, enfim, os que servimos a lavradores, por muito que trabalhemos no dia, ainda<br />

que as coisas nos corram mal, à noite ceamos o nosso caldo e dormimos na nossa<br />

cama, coisa que eu não faço <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que sirvo a Vossa Mercê, a não ser o breve<br />

tempo que estivemos em casa <strong>de</strong> D. Diogo <strong>de</strong> Miranda, e o regalo que tive com a<br />

escuma que tirei das olhas <strong>de</strong> Camacho, e o que comi, bebi e dormi em casa <strong>de</strong><br />

Basílio; o mais tenho sempre dormido em terra dura e ao sereno, sujeito às<br />

inclemências do céu, sustentando-me com raspas <strong>de</strong> queijo e nacos <strong>de</strong> pão, e<br />

bebendo água, ora dos arroios, ora das fontes que topamos por esses caminhos.<br />

— Admito — disse D. <strong>Quixote</strong> — que seja verda<strong>de</strong> tudo o que dizes; quanto<br />

te parece que te <strong>de</strong>vo dar a mais do que te dava Tomé Carrasco?<br />

— Parece-me — disse Sancho — que com dois reais que Vossa Mercê<br />

acrescentasse em cada mês, me daria por bem pago, isto enquanto ao salário do<br />

meu trabalho; mas, para me satisfazer da palavra que Vossa Mercê me <strong>de</strong>u, e da<br />

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