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D.Quixote de La Mancha - Unama

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www.nead.unama.br<br />

Cem passos mais teriam andado quando, ao transporem uma quina da rocha,<br />

apareceu patente a causa que se procurava, e que era a única possível para aquele<br />

horríssono ruído, que tanto os espantara, e que tão suspensos e medrosos os tivera<br />

por toda a noite. A causa única, leitor meu (se não levas a mal que to <strong>de</strong>clare), eram<br />

seis maços <strong>de</strong> pisão que alternavam os golpes com todo aquele estampido.<br />

Logo que D. <strong>Quixote</strong> viu o que era, emu<strong>de</strong>ceu, e ficou-se <strong>de</strong> todo pasmado.<br />

Voltou-se para ele Sancho, e viu-o <strong>de</strong> cabeça <strong>de</strong>rrubada para os peitos, com<br />

mostras <strong>de</strong> en-ver-go-nha-dís-simo.<br />

Olhou também D. <strong>Quixote</strong> para Sancho, e viu que estava <strong>de</strong> bochechas<br />

entufadas, e a boca cheia <strong>de</strong> riso, com evi<strong>de</strong>ntes sinais <strong>de</strong> estar por um triz a<br />

arrebentar-lhe a gargalhada. Não pô<strong>de</strong> tanto com o bom do cavaleiro a sua<br />

melancolia, que à vista da cara <strong>de</strong> Sancho se pu<strong>de</strong>sse conter que também não risse.<br />

Sancho, vendo que o próprio amo lhe abria o exemplo, rompeu a presa <strong>de</strong> maneira<br />

que teve <strong>de</strong> apertar as ilhargas com as mãos ambas, para não rebentar a rir.<br />

Quatro vezes serenou, e outras tantas voltou à mesma explosão <strong>de</strong> hilarida<strong>de</strong><br />

com a mesma força que a princípio.<br />

Já <strong>de</strong> tanta galhofa se ia dando ao diabo D. <strong>Quixote</strong>, mormente quando lhe<br />

ouviu dizer <strong>de</strong> chança:<br />

— "Hás-<strong>de</strong> saber, Sancho amigo, que eu nasci por <strong>de</strong>terminação do céu<br />

nesta ida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ferro para ressuscitar nela a <strong>de</strong> ouro ou dourada. Eu sou aquele para<br />

quem estão guardados os perigos, as gran<strong>de</strong>s façanhas, os valorosos feitos."<br />

E por aqui foi enfiando todas as razões que ao amo ouvira, quando<br />

começaram aqueles golpes medonhos.<br />

Vendo pois D. <strong>Quixote</strong> que o seu escu<strong>de</strong>iro fazia mofa <strong>de</strong>le, correu-se, e em<br />

tanta maneira se agastou, que alçou a chuça, e lhe assentou duas bordoadas tais,<br />

que, se, assim como as ele recebeu nas costas, o apanham pela cabeça, livravam o<br />

amo <strong>de</strong> lhe pagar as soldadas, salvo se fosse aos seus her<strong>de</strong>iros.<br />

Sancho, conhecendo o mal que as suas graças lhe iam saindo, e, receando<br />

que o ensino passasse a mais, com muita humilda<strong>de</strong> lhe disse:<br />

— Tenha mão Vossa Mercê, senhor meu, que tudo isto em mim é graça.<br />

— Pois se é graça em ti, em mim é que não o é — respon<strong>de</strong>u D. <strong>Quixote</strong>; —<br />

vin<strong>de</strong> cá, senhor dizedor; parece-vos a vós, que, se assim como nos saíram maços<br />

<strong>de</strong> pisão, nos surdisse realmente uma aventura perigosa, não tinha eu já mostrado o<br />

ânimo preciso para a empreen<strong>de</strong>r e levar a cabo? Estou obrigado, porventura,<br />

sendo, como sou cavaleiro, a conhecer e diferençar os sons, e saber quais são os<br />

<strong>de</strong> maço <strong>de</strong> pisoeiro, e quais não? E <strong>de</strong>mais, bem podia ser (e assim era realmente)<br />

que eu nunca em dias <strong>de</strong> vida tal houvesse presenciado, como vós outro, que sois<br />

um rústico e um vilão ruim nado e criado entre eles. Ora supon<strong>de</strong> vós que estes seis<br />

maços se transformam em seis gigantes; abarbem-nos comigo, a um e um ou todos<br />

<strong>de</strong> rondão; e quando eu vo-los não apresentar a todos <strong>de</strong> pernas ao ar, dou-vos<br />

licença que façais <strong>de</strong> mim quanta chacota quiser<strong>de</strong>s.<br />

— Basta já, senhor meu — replicou Sancho — confesso que passei <strong>de</strong><br />

risonho; mas diga-me Vossa Mercê, agora que fizemos as pazes (assim Deus o tire<br />

para o futuro <strong>de</strong> todas as aventuras tão são e salvo como <strong>de</strong>stas o livrou): não foi<br />

coisa <strong>de</strong> rir, e não é para se contar, o gran<strong>de</strong> medo que tivemos? Pelo menos o que<br />

eu tive, que <strong>de</strong> Vossa Mercê já eu sei que o não conhece, nem sabe o que venha a<br />

ser temor nem espanto.<br />

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