15.04.2013 Views

D.Quixote de La Mancha - Unama

D.Quixote de La Mancha - Unama

D.Quixote de La Mancha - Unama

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

www.nead.unama.br<br />

quero que infirais, minhas tolas, que há muita confusão entre as linhagens, e que só<br />

parecem gran<strong>de</strong>s e ilustres as que o mostram ser na virtu<strong>de</strong>, na riqueza e<br />

liberalida<strong>de</strong> dos seus representantes. Disse virtu<strong>de</strong>s, riquezas e liberalida<strong>de</strong>s,<br />

porque o gran<strong>de</strong> que for vicioso será um gran<strong>de</strong> vicioso, e o opulento não liberal<br />

será um avarento mendigo, que ao possuidor das riquezas não o faz feliz o possuílas,<br />

mas sim <strong>de</strong>spendê-las, e não o gastá-las como quiser, mas saber empregá-las<br />

bem. Ao cavaleiro pobre não lhe fica outro caminho para mostrar que é cavaleiro,<br />

senão o da virtu<strong>de</strong>, sendo afável, cortês, comedido e serviçal, não soberbo, nem<br />

murmurador, nem arrogante, e, sobretudo, caritativo, que com dois maravedis que<br />

ele dê, com ânimo alegre, se mostrará tão liberal, como o que dá esmola com toque<br />

<strong>de</strong> sinos, e não haverá quem o veja adornado das referidas virtu<strong>de</strong>s, que, ainda que<br />

o não conheça, <strong>de</strong>ixe <strong>de</strong> o consi<strong>de</strong>rar homem <strong>de</strong> boa casta, e sempre o louvor foi<br />

prêmio da virtu<strong>de</strong>. Há dois caminhos, por on<strong>de</strong> os homens po<strong>de</strong>m chegar a ser ricos<br />

e consi<strong>de</strong>rados: um é o das letras, o outro o das armas. Eu, pela inclinação que<br />

tenho para as armas, vejo que nasci <strong>de</strong>baixo do influxo do planeta Marte, <strong>de</strong> forma<br />

que me é forçoso seguir por esse caminho; por ele hei-<strong>de</strong> ir, mau grado a toda a<br />

gente, e <strong>de</strong>bal<strong>de</strong> vos cansareis em persuadir-me a que não queira o que os céus<br />

querem, o que a fortuna or<strong>de</strong>na, o que pe<strong>de</strong> a razão, e, sobretudo, o que a minha<br />

vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong>seja; pois sabendo, como sei, os inúmeros trabalhos que tem a cavalaria<br />

andante, sei também os bens infinitos que com ela se alcançam, e sei que a senda<br />

da virtu<strong>de</strong> é muito estreita, e o caminho do vício largo e espaçoso, que os seus fins e<br />

para<strong>de</strong>iros são diferentes, porque o do vício, dilatado e espaçoso, acaba na morte, e<br />

o da virtu<strong>de</strong>, apertado e íngreme, acaba em vida, e não em vida que tenha termo,<br />

mas na vida eterna, e sei como disse o nosso gran<strong>de</strong> poeta castelhano:<br />

Conduz-nos esta aspérrima vereda<br />

da imortalida<strong>de</strong> ao alto assento,<br />

aon<strong>de</strong> não chega quem dali se arreda.<br />

— Ai! Desditosa <strong>de</strong> mim — disse a sobrinha — que também meu tio é poeta;<br />

tudo sabe e tudo alcança, e aposto que, se imaginar ser alvenel, fabricará uma casa<br />

como ninguém.<br />

— Juro-te, sobrinha — respon<strong>de</strong>u D. <strong>Quixote</strong> — que se estes pensamentos<br />

cavalheirescos me não arrebatassem os sentidos todos, não haveria coisa que eu<br />

não fizesse, nem curiosida<strong>de</strong> que me não saísse das mãos.<br />

A este tempo bateram à porta, e, perguntando-se quem era, respon<strong>de</strong>u<br />

Sancho Pança; apenas a ama o conheceu, tratou <strong>de</strong> se ir embora, para o não ver,<br />

tal era o ódio que lhe votara.<br />

Foi abrir a sobrinha, saiu a recebê-lo <strong>de</strong> braços abertos seu amo D. <strong>Quixote</strong>, e<br />

encerraram-se ambos no seu aposento, on<strong>de</strong> tiveram outro colóquio, não menos<br />

interessante que o anterior.<br />

CAPÍTULO VII<br />

Do que passou D. <strong>Quixote</strong> com o seu escu<strong>de</strong>iro, e outros sucessos<br />

famosíssimos.<br />

Apenas viu a ama que Sancho Pança se encerrava com D. <strong>Quixote</strong>, logo<br />

imaginou o que eles iriam tratar; e, percebendo que daquela prática resultaria<br />

terceira saída, com gran<strong>de</strong> mágoa e aflição foi procurar o bacharel Sansão Carrasco,<br />

337

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!