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D.Quixote de La Mancha - Unama

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www.nead.unama.br<br />

boca da fama por aí tem espalhado? Já se não po<strong>de</strong> duvidar que este ofício e<br />

ocupação exce<strong>de</strong> a todos aqueles e aquelas que os homens inventaram, e tanto<br />

mais <strong>de</strong>ve ser estimado, quanto a maiores perigos está sujeito: e não ousem<br />

contradizer-me os que preten<strong>de</strong>m sustentar que as letras levam vantagem às armas,<br />

pois eu lhes afirmarei, sejam eles quem quer que forem, que não sabem o que<br />

dizem: porque a principal razão em que os tais se fundam é em que os trabalhos do<br />

espírito exce<strong>de</strong>m muito os do corpo, e que as armas somente ao corpo pertencem e<br />

por ele só são exercitadas; como se uma tão nobre ocupação fosse ofício próprio<br />

daqueles que levam a sua vida conduzindo cargas, os quais não precisam senão <strong>de</strong><br />

possuir forças materiais; ou como se isto, a que chamamos armas, nós os que<br />

fazemos profissão <strong>de</strong>las, não precisasse <strong>de</strong> muitos atos <strong>de</strong> fortaleza, os quais<br />

carecem na sua execução, para que esta seja perfeita, <strong>de</strong> muita inteligência em<br />

quem os executa: ou como se o guerreiro, que tem a seu cargo o comando dum<br />

exército, ou a <strong>de</strong>fesa duma povoação sitiada, não tivesse necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> trabalhar<br />

igualmente com o espírito e com o corpo: se não, veja-se se é possível conseguir<br />

por meio das forças corporais e materiais o penetrar as intenções do inimigo, seus<br />

projetos e seus estratagemas, e prevenir as dificulda<strong>de</strong>s e os danos que ele po<strong>de</strong><br />

suscitar e opor, tudo isto coisas tocantes privativamente ao entendimento, e nas<br />

quais o corpo nenhuma parte po<strong>de</strong> ter. Sendo pois ponto verificado que as armas<br />

requerem tanta força <strong>de</strong> espírito como as letras, examinemos agora qual dos dois<br />

espíritos é o que trabalha mais, se o do letrado, se o do guerreiro. Para isto se<br />

conhecer bem, <strong>de</strong>ve examinar-se com atenção o <strong>de</strong>stino a que cada um dos dois se<br />

encaminha, porque em mais alto valor se há-<strong>de</strong> apreciar a intenção daquele que tem<br />

por objeto alcançar um fim mais glorioso e nobre. O fim a que as letras se dirigem (e<br />

não falo agora das divinas, que aspiram somente a encaminhar as almas para o céu,<br />

fim este tão sem fim, que nenhum outro se lhe po<strong>de</strong> igualar), quero dizer, as letras<br />

humanas, é estabelecer com clareza a justiça distributiva, e dar a cada um o que é<br />

seu, e o procurar e fazer que as boas leis se guar<strong>de</strong>m e se cumpram: fim por certo<br />

este generoso, e digno <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> louvor; porém não <strong>de</strong> tanto como merece aquele a<br />

que as armas aten<strong>de</strong>, o qual consiste em segurar a paz, que é o maior bem que os<br />

homens po<strong>de</strong>m nesta vida <strong>de</strong>sejar: e observe-se, que as primeiras boas novas, que<br />

teve o mundo e tiveram os homens, foram as anunciadas pelos anjos na noite que<br />

para nós todos foi luminosíssimo dia, quando nos ares cantaram: Glória seja dada a<br />

Deus nas alturas, e na terra paz aos homens <strong>de</strong> boa vonta<strong>de</strong>: e a saudação que o<br />

melhor mestre da terra e do céu ensinou aos seus companheiros e favorecidos foi<br />

dizer-lhes que, quando entrassem em alguma casa, falassem assim: Paz seja nesta<br />

casa: e muitas outras vezes lhes disse: Dou-vos a minha paz, a minha paz vos<br />

<strong>de</strong>ixo, a paz seja convosco: bem como jóia e prenda dada e <strong>de</strong>ixada por tal mão,<br />

jóia sem a qual não po<strong>de</strong> haver algum bem nem na terra nem no céu: esta paz é o<br />

verda<strong>de</strong>iro fim da guerra pois o mesmo é dizer armas do que dizer guerra.<br />

Assentada pois esta verda<strong>de</strong>, que o final da guerra é a paz, e que nisto levam as<br />

armas vantagem às letras, tratemos agora dos trabalhos do letrado com o seu corpo<br />

e dos do professor das armas, e veremos quais são maiores.<br />

Por esta maneira e com estes bons termos prosseguia D. <strong>Quixote</strong> na sua<br />

prática, <strong>de</strong> modo que nenhum dos que o escutavam podia persuadir-se <strong>de</strong> que na<br />

realida<strong>de</strong> ele estava louco; antes pelo contrário, como a maior parte dos que o<br />

ouviam eram cavaleiros, a quem as armas são sempre anexas, o ouviam com<br />

gran<strong>de</strong> prazer, e ele continuou dizendo:<br />

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