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D.Quixote de La Mancha - Unama

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www.nead.unama.br<br />

Muita prudência me foi mister para dissimular o contentamento que me<br />

tomou, quando semelhante título me chegou aos ouvidos; e antes que o rapaz<br />

apresentasse o livro ao homem das sedas, lhe comprei toda a papelada e os<br />

alfarrábios por uns reles cobres, que, se ele fora mais previsto, e soubesse a gran<strong>de</strong><br />

melgueira que me trazia ali, bem podia ter feito comigo veniaga para mais <strong>de</strong> seis<br />

reales.<br />

Retirei-me logo com o mourisco para o claustro da igreja maior, e lhe pedi me<br />

trocasse em vulgar todos aqueles alfarrábios, que tratavam <strong>de</strong> D. <strong>Quixote</strong>, sem<br />

omitir nem acrescentar nada, oferecendo-lhe a paga que ele quisesse.<br />

Contentou-se com duas arrobas <strong>de</strong> passas, e duas fangas <strong>de</strong> trigo, e<br />

prometeu traduzi-los bem e fielmente com muita brevida<strong>de</strong>. Mas eu, para facilitar<br />

mais o negócio, e não largar da mão tão bom achado, o trouxe para minha casa,<br />

on<strong>de</strong> em pouco mais <strong>de</strong> mês e meio traduziu tudo exatamente como aqui se refere.<br />

Estava no primeiro cartapácio <strong>de</strong>buxada mui ao natural a batalha <strong>de</strong> D. <strong>Quixote</strong> com<br />

o biscainho, na mesma postura em que os <strong>de</strong>screve a história, <strong>de</strong> espadas altas, um<br />

coberto da sua ro<strong>de</strong>la, o outro da almofada, e a mula do biscainho tão ao vivo, que a<br />

distância <strong>de</strong> tiro <strong>de</strong> besta se conhecia ser <strong>de</strong> aluguer. Tinha o biscainho por baixo<br />

uma inscrição que dizia: D. Sancho <strong>de</strong> Azpeytía, que sem dúvida <strong>de</strong>via ser o seu<br />

nome, e aos pés do Rocinante estava outra que dizia: D. <strong>Quixote</strong>.<br />

Vinha o Rocinante ma-ra-vi-lho-sa-men-te pintado, tão <strong>de</strong>lgado e comprido,<br />

tão <strong>de</strong>scarnado e fraco, com arcabouço tão ressaído, e tão <strong>de</strong>senganado ético, que<br />

bem mostrava quanto à própria se lhe tinha posto o nome <strong>de</strong> Rocinante.<br />

Ao pé <strong>de</strong>le estava Sancho Pança com o burro pelo cabresto, com outro<br />

letreiro que dizia: Sancho Zancas, o que havia <strong>de</strong> ser, pelo que a pintura mostrava,<br />

por ter a barriga bojuda, a estatura baixa, e as ancas largas, do que lhe viria o nome<br />

<strong>de</strong> Pança e Zancas, que por ambas estas alcunhas o <strong>de</strong>signa algumas vezes a<br />

história.<br />

Algumas outras miu<strong>de</strong>zas se po<strong>de</strong>riam notar, mas são todas <strong>de</strong> pouca<br />

importância, e não fazem ao caso para a verda<strong>de</strong> da narrativa, que no ser<br />

verda<strong>de</strong>ira é que cifra a sua bonda<strong>de</strong>.<br />

Se aqui se po<strong>de</strong> pôr alguma dúvida por parte da veracida<strong>de</strong>, será só o ter sido<br />

o autor arábigo, por ser mui próprio dos daquela nação serem mentirosos, ainda<br />

que, por outra parte, em razão <strong>de</strong> serem tão nossos inimigos, antes se po<strong>de</strong><br />

enten<strong>de</strong>r que mais seriam apoucados que sobejos nos louvores <strong>de</strong> um cavaleiro<br />

batizado. A mim assim me parece, pois, po<strong>de</strong>ndo <strong>de</strong>ixar correr à larga a pena no<br />

encarecer os merecimentos <strong>de</strong> tão bom fidalgo, parece que <strong>de</strong> propósito os remete<br />

ao escuro; coisa mal feita e piormente pensada, por <strong>de</strong>verem ser os historiadores<br />

muito pontuais, verda<strong>de</strong>iros, e nada apaixonados, sem que nem interesse, nem<br />

temor, nem ódio, nem afeição, os <strong>de</strong>sviem do caminho direito da verda<strong>de</strong>, que é a<br />

filha legítima <strong>de</strong> quem historia, êmula do tempo, <strong>de</strong>pósito dos feitos, testemunha do<br />

passado, exemplo e conselho do presente, e ensino do futuro.<br />

Nesta sei eu que se achará tudo que porventura se <strong>de</strong>seje na mais aprazível;<br />

e se alguma coisa boa lhe falecer, para mim tenho que foi culpa do perro do autor,<br />

antes que por míngua da matéria.<br />

Enfim, a sua segunda parte, prosseguindo na tradução, começava <strong>de</strong>sta<br />

maneira:<br />

Postas e levantadas em alto as cortadoras espadas dos dois valorosos e<br />

enojados combatentes, não parecia senão que estavam ameaçando céu, terra, e<br />

abismo; tal era o seu <strong>de</strong>nodo e aspecto!<br />

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