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D.Quixote de La Mancha - Unama

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www.nead.unama.br<br />

— E mais do que te parece — respon<strong>de</strong>u D, <strong>Quixote</strong>; — vê-lo-ás quando<br />

levares à minha senhora Dulcinéia <strong>de</strong>l Toboso uma carta minha escrita em verso do<br />

princípio até ao fim, porque hás-<strong>de</strong> saber, Sancho, que todos ou quase todos os<br />

cavaleiros andantes dos passados tempos eram gran<strong>de</strong>s trovadores e gran<strong>de</strong>s<br />

músicos, que ambas estas habilida<strong>de</strong>s ou graças infusas (por melhor dizer) andam<br />

anexas aos namorados andantes, se bem que as coplas dos cavaleiros antigos<br />

tinham mais <strong>de</strong> estro, que <strong>de</strong> apuro.<br />

— Leia para diante Vossa Mercê, que talvez dê com alguma coisa que<br />

satisfaça.<br />

Voltou D. <strong>Quixote</strong> a folha, e disse:<br />

— Isto agora é prosa, e parece carta.<br />

— Carta manda<strong>de</strong>ira, senhor? — perguntou Sancho.<br />

— Pelo princípio não parece senão <strong>de</strong> amores — respon<strong>de</strong>u D. <strong>Quixote</strong>.<br />

— Pois leia Vossa Mercê alto — disse Sancho — que eu morro-me por estas<br />

coisas <strong>de</strong> amores.<br />

— Com todo o gosto — disse D. <strong>Quixote</strong>.<br />

E lendo-a alto como Sancho lhe pedia, viu que dizia <strong>de</strong>sta maneira:<br />

"A tua falsa promessa, e a minha certa <strong>de</strong>sventura me levam a sítios don<strong>de</strong><br />

antes chegarão aos teus ouvidos novas da minha morte, do que as razões das<br />

minhas queixas. Deixaste-me, ó ingrata, por quem tem mais; porém não vale mais<br />

do que eu; mas, se a virtu<strong>de</strong> fora riqueza que se estimasse, não invejara eu ditas<br />

alheias, nem chorara <strong>de</strong>sditas próprias. O que levantou a tua formosura hão-no<br />

<strong>de</strong>rribado as tuas obras. Por ela entendi que eras anjo, e por elas conheço que és<br />

mulher. Fica-te em paz, causadora da minha guerra, e o céu permita que os<br />

enganos do teu esposo te fiquem sempre encobertos, para que tu não fiques para<br />

sempre arrependida do que fizeste, e eu não tome vingança do que não <strong>de</strong>sejo."<br />

Concluída a leitura da carta, disse D. <strong>Quixote</strong>:<br />

— Esta carta ainda menos nos dá a conhecer, do que nos <strong>de</strong>ram os versos, e<br />

só sim que quem a escreveu era algum amante <strong>de</strong>sprezado.<br />

E, folheando quase todo o livrinho, achou outros versos e cartas <strong>de</strong> que pô<strong>de</strong><br />

ler parte, e parte não; mas em geral eram tudo queixas, lamentos, <strong>de</strong>sconfianças,<br />

gostos e <strong>de</strong>sgostos, favores e <strong>de</strong>sdéns, os favores festejados e os <strong>de</strong>sdéns<br />

carpidos.<br />

Enquanto D. <strong>Quixote</strong> revolvia o canhenho, revolvia Sancho a maleta, sem<br />

<strong>de</strong>ixar recantinho em toda ela, nem no coxim, que não esquadrinhasse, nem costura<br />

que não <strong>de</strong>scosesse, nem nó <strong>de</strong> lã que não carpeasse, para lhe não escapar nada<br />

por falta <strong>de</strong> diligência e cuidado; tal sofreguidão tinha nele <strong>de</strong>spertado a melgueira<br />

dos escudos, que passavam <strong>de</strong> cem; e, ainda que não achou mais, já com isso <strong>de</strong>u<br />

por bem empregados os boléus da manta, os vômitos do bálsamo, as bênçãos das<br />

estacas, as punhadas do arrieiro, o <strong>de</strong>saparecimento dos alforjes, o roubo do gabão,<br />

e toda a fome, se<strong>de</strong> e cansaço que passara no serviço <strong>de</strong> seu bom senhor,<br />

enten<strong>de</strong>ndo que estava pago e repago, com a mercê <strong>de</strong> lhe entregar a rica veniaga.<br />

Com gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo ficou o cavaleiro da Triste Figura <strong>de</strong> saber quem seria o<br />

dono da maleta, conjecturando pelo soneto, e carta, pelo dinheiro em ouro, e pelas<br />

boas camisas, que po<strong>de</strong>ria tudo pertencer a algum namorado <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> conta, a<br />

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