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D.Quixote de La Mancha - Unama

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www.nead.unama.br<br />

como o <strong>de</strong> joeirar trigo; mas também eu já disse que aquilo não eram grãos <strong>de</strong> trigo,<br />

mas sim pérolas orientais; e, para prova <strong>de</strong>sta verda<strong>de</strong>, quero dizer a vossas<br />

magnitu<strong>de</strong>s que, passando eu agora pelo Toboso, nunca fui capaz <strong>de</strong> encontrar os<br />

palácios <strong>de</strong> Dulcinéia, e que outro dia, tendo-a visto Sancho, meu escu<strong>de</strong>iro, em<br />

sublime figura, que é a mais bela do mundo todo, a mim pareceu-me uma lavra<strong>de</strong>ira<br />

tosca e feia, e muito rústica no falar, sendo ela a discrição do mundo; e, visto que eu<br />

não estou encantado, nem o posso estar, como o bom senso o mostra, é ela a<br />

encantada, a ofendida e a transformada, e nela se vingaram <strong>de</strong> mim os meus<br />

inimigos, e por ela viverei em perpétuas lágrimas, até a ver em seu antigo estado;<br />

tudo isto eu disse para que ninguém faça caso do que refere Sancho a respeito <strong>de</strong> a<br />

ter encontrado a joeirar trigo, que, se a mudaram para mim, a ele lha trocariam<br />

também. Dulcinéia é <strong>de</strong> alto nascimento e das fidalgas linhagens que há no Toboso,<br />

que são muitas, antigas e ótimas. E este lugar ficará famoso por ter dado o berço à<br />

incomparável Dulcinéia, como foi Tróia por Helena, e a Espanha pela Cava, mas<br />

ainda com melhor título e fama. Demais, <strong>de</strong>sejo que vossas senhorias entendam que<br />

Sancho Pança é um dos mais divertidos escu<strong>de</strong>iros que nunca serviram a cavaleiro<br />

andante; tem às vezes umas simplicida<strong>de</strong>s tão agudas, que a gente pergunta a si<br />

própria se tudo aquilo é necessida<strong>de</strong> ou malícia; umas vezes parece velhaco, e<br />

outras vezes tolo: <strong>de</strong> tudo duvida e tudo acredita; quando penso que se vai<br />

<strong>de</strong>spenhar por tonto, sai-me com umas discrições que o levantam ao céu.<br />

Finalmente, eu não o trocaria por outro escu<strong>de</strong>iro, ainda que me <strong>de</strong>ssem por<br />

<strong>de</strong>masia uma cida<strong>de</strong>; e assim, duvido se será bom mandá-lo para o governo <strong>de</strong> que<br />

vossa gran<strong>de</strong>za lhe fez mercê, ainda que nele vejo uma certa aptidão para isto <strong>de</strong><br />

governar, e po<strong>de</strong> ser que, aguçando-lhe um poucochito o entendimento, se saia bem<br />

do encargo: tanto, que já sabemos por experiência que não são mister nem muitas<br />

letras, nem muita habilida<strong>de</strong>, para qualquer ser governador, pois há por aí centos<br />

que mal sabem ler e governam como águias. O caso está em que tenham boas<br />

intenções e <strong>de</strong>sejem acertar em tudo, que nunca lhes faltará quem os aconselhe e<br />

encaminhe no que hão-<strong>de</strong> fazer, como os governadores cavaleiros e não letrados,<br />

que sentenceiam com assessores. A seu tempo eu lhe darei alguns conselhos, para<br />

sua utilida<strong>de</strong> e proveito da ilha que governar.<br />

Estavam neste ponto do seu colóquio o duque, a duquesa e D. <strong>Quixote</strong>,<br />

quando ouviram muitos brados e gran<strong>de</strong> rumor <strong>de</strong> gente, e entrou Sancho <strong>de</strong> corrida<br />

na sala, com uma rodilha atada ao pescoço, e atrás <strong>de</strong>le muitos bichos <strong>de</strong> cozinha, e<br />

outra criadagem miúda, um dos quais trazia um cal<strong>de</strong>irão <strong>de</strong> água, que, pela cor e<br />

pouca limpeza, mostrava ser <strong>de</strong> lavar a louça. Perseguia-o este, procurando pôr-lhe<br />

o cal<strong>de</strong>irão <strong>de</strong>baixo das barbas, ao passo que outro mostrava querer-lhas lavar.<br />

— Que é isso, irmãos? — perguntou a duquesa — que quereis a esse bom<br />

homem? pois não consi<strong>de</strong>rais que está nomeado governador?<br />

— Este senhor não se quer <strong>de</strong>ixar lavar — respon<strong>de</strong>u o improvisado barbeiro<br />

— como é costume, e como se lavou o senhor duque, e o amo do senhor Sancho.<br />

— Quero, sim — respon<strong>de</strong>u Sancho com muita cólera — mas <strong>de</strong>sejaria que<br />

fosse com toalhas mais limpas e água mais clara, e com mãos menos sujas, que<br />

não há tanta diferença entre mim e meu amo, que a ele o lavem com água <strong>de</strong> anjos<br />

e a mim com a barrela do diabo. As usanças das terras e dos palácios dos príncipes<br />

são muito boas, se não incomodam ninguém; mas o costume das lavagens que aqui<br />

se usam é pior que o das disciplinas e cilícios. Eu tenho as minhas barbas limpas,<br />

não preciso <strong>de</strong> semelhantes refrescos, e aquele que se chegar a lavar-me ou a tocar<br />

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