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D.Quixote de La Mancha - Unama

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www.nead.unama.br<br />

— Se eu tivesse servido um gran<strong>de</strong> <strong>de</strong> Espanha, ou qualquer personagem<br />

principal, <strong>de</strong>certo que o levaria — respon<strong>de</strong>u o moço — que isso se lucra em servir<br />

os gran<strong>de</strong>s; passa-se do tinelo a ser-se alferes ou capitão, ou a ter um bom<br />

emprego; mas eu, <strong>de</strong>sventurado, servi sempre a uns pelintras <strong>de</strong> rendimentos tão<br />

minguados, que se lhes ia meta<strong>de</strong> em pagar o engomado dum cabeção, e seria<br />

milagre que um pajem aventureiro alcançasse alguma coisa que razoável fosse.<br />

— Mas diga-me lá, amigo — tornou D. <strong>Quixote</strong> — é possível que nenhum dos<br />

amos que serviu lhe <strong>de</strong>sse ao menos uma libré?<br />

— Houve dois que ma <strong>de</strong>ram — respon<strong>de</strong>u o pajem — mas assim como<br />

àquele que sai duma or<strong>de</strong>m religiosa antes <strong>de</strong> professar, lhe tiram o hábito e lhe<br />

restituem o fato secular, assim me faziam os meus amos, que, acabados os<br />

negócios que os traziam à corte, voltavam para suas casas e levavam as librés, que<br />

só por ostentação me tinham dado.<br />

— Insigne vileza! — redarguiu D. <strong>Quixote</strong> — mas felicite-se por ter saído da<br />

corte com tão boa intenção, como essa que leva, porque não há outra coisa na terra,<br />

<strong>de</strong> mais honra e mais proveito, do que servir a Deus primeiramente, e logo em<br />

seguida ao seu rei e senhor natural, especialmente no exercício das armas, pelas<br />

quais se alcança, se não mais riquezas, pelo menos mais honra do que pelas letras,<br />

como eu tenho dito muitas vezes; que ainda que as letras têm fundado mais<br />

morgados do que as armas, há nestas, contudo, mais esplendor, que lhes dá<br />

vantagem. E isto que lhe quero dizer agora, leve-o na memória que lhe será <strong>de</strong><br />

muito proveito e alívio nos seus trabalhos, e é que aparte a imaginação dos<br />

sucessos adversos que lhe pu<strong>de</strong>rem acontecer, que o pior <strong>de</strong> todos é à morte.<br />

Perguntaram a Júlio César — o valoroso imperador romano — qual era a melhor<br />

morte. Respon<strong>de</strong>u que era a impensada, a súbita e imprevista; e, ainda que<br />

respon<strong>de</strong>u como gentio e bem alheio ao conhecimento do verda<strong>de</strong>iro Deus, com<br />

tudo isso não disse mal, para se poupar ao sentimento humano. Ainda que vos<br />

matem, na primeira facção ou refrega, ou com um tiro <strong>de</strong> peça, ou indo pelos ares<br />

com a explosão duma mina, que importa? Tudo é morrer; e, segundo diz Terêncio,<br />

melhor parece o soldado morto na batalha, do que vivo e salvo na fuga: e tanto<br />

maior fama alcança o bom soldado, quanto maior é a sua obediência aos capitães e<br />

aos que o po<strong>de</strong>m mandar; e, reparai, filho, que fica melhor ao soldado cheirar a<br />

pólvora que a âmbar; e se a velhice vos colher nesse honroso exercício, ainda que<br />

seja cheio <strong>de</strong> feridas, estropiado e coxo, pelo menos não vos po<strong>de</strong>rá colher sem<br />

honra, e tal, que a pobreza vo-la não po<strong>de</strong>rá menoscabar; tanto mais, que já se vai<br />

tratando <strong>de</strong> alimentar e remediar os soldados velhos e estropiados, porque não é<br />

bem que se faça com eles o que fazem os que resgatam os seus negros quando já<br />

são velhos e não po<strong>de</strong>m servir, e, pondo-os fora <strong>de</strong> casa com o título <strong>de</strong> forros, os<br />

fazem escravos da fome, escravidão <strong>de</strong> que só po<strong>de</strong>m resgatar-se com a morte; por<br />

agora nada mais vos digo, senão que monteis na anca do meu cavalo até à venda, e<br />

ali ceareis comigo; pela manhã seguireis vosso caminho, e Deus vo-lo dê tão bom<br />

como os vossos bons <strong>de</strong>sejos merecem.<br />

O pajem não aceitou o convite para montar a cavalo, mas aceitou o da ceia; e<br />

Sancho, entretanto, dizia <strong>de</strong> si para si:<br />

— Valha-te Deus, que po<strong>de</strong>; como é que um homem que sabe tais, tantas e<br />

tão boas coisas como as que acaba <strong>de</strong> proferir, afirma também que viu os<br />

impossíveis disparates que conta da cova <strong>de</strong> Montesinos? Ele o dirá.<br />

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