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D.Quixote de La Mancha - Unama

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www.nead.unama.br<br />

Todas estas razões do licenciado as esteve escutando outro doido, metido<br />

numa jaula fronteira da do furioso, e levantando-se duma esteira velha, on<strong>de</strong> se<br />

<strong>de</strong>itara nu em pêlo, perguntou, com gran<strong>de</strong>s brados, quem é que se ia embora, são<br />

e com juízo.<br />

Respon<strong>de</strong>u o licenciado:<br />

— Sou eu, irmão, que já não tenho necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aqui me <strong>de</strong>morar mais<br />

tempo, pelo que dou infinitas graças aos céus, que tamanha mercê me fizeram.<br />

— Ve<strong>de</strong> o que dizeis, licenciado, não vos engane o diabo — redarguiu o doido<br />

— está-vos pulando o pé? Será melhor que fiqueis em vossa casa, para vos<br />

poupar<strong>de</strong>s à volta.<br />

— Eu sei que estou bom — tornou o licenciado — e não haverá motivo para<br />

eu tornar a correr as estações.<br />

— Estais bom... vós? — disse o louco — pois muito bem, i<strong>de</strong>-vos com Deus;<br />

mas voto a Júpiter, cuja majesta<strong>de</strong> eu represento na terra, que só por este pecado<br />

que hoje Sevilha comete em vos tirar <strong>de</strong>sta casa, e em vos ter por homem sensato,<br />

tenho <strong>de</strong> lhe dar tamanho castigo, que fique memória <strong>de</strong>le por todos os séculos dos<br />

séculos, amém. Não sabes tu, licendiadito minguado, que o po<strong>de</strong>rei fazer, pois,<br />

como digo, sou Júpiter Tonante, que tenho nas minhas mãos os raios abrasadores,<br />

com que posso e costumo ameaçar e <strong>de</strong>struir o mundo? Mas só com uma coisa<br />

quero castigar este povo ignorante, e é que não há-<strong>de</strong> chover três anos inteiros em<br />

todo o distrito e seus contornos; três anos, que se hão-<strong>de</strong> contar <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o dia e<br />

momento em que proferir esta ameaça. Tu livre, tu são, tu com juízo, e eu amarrado,<br />

enfermo e louco! Hei-<strong>de</strong> pensar tanto em dar chuva à terra, como penso em<br />

enforcar-me!<br />

Estiveram os circunstantes atentos a ouvir as vozes e os discursos do louco;<br />

mas o nosso licenciado, voltando-se para o capelão, e agarrando-lhe nas mãos,<br />

disse-lhe:<br />

— Não se aflija Vossa Mercê, meu senhor, nem faça caso do que este louco<br />

diz, que, se ele é Júpiter, e não quer dar chuva, eu, que sou Netuno, pai e <strong>de</strong>us das<br />

águas, choverei todas as vezes que me parecer e for necessário.<br />

E a isto respon<strong>de</strong>u o capelão:<br />

— Em todo o caso, senhor Netuno, não será bom magoarmos o senhor<br />

Júpiter; fique Vossa Mercê em sua casa, que outro dia, quando houver mais vagar e<br />

mais comodida<strong>de</strong>, voltaremos por Vossa Mercê.<br />

Riu-se o reitor, riram-se os circunstantes, e <strong>de</strong>ste riso ficou meio corrido o<br />

capelão; <strong>de</strong>spiram o licenciado, ficou em casa, e acabou-se a história.<br />

— Então é este o conto, senhor barbeiro — disse D. <strong>Quixote</strong> — que, por vir<br />

<strong>de</strong> mol<strong>de</strong>, não podia <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> se narrar? Ah! Senhor tosquiador, senhor tosquiador!<br />

Cego é quem não vê por entre os fios <strong>de</strong> seda! E é possível que Vossa Mercê não<br />

saiba que as comparações que se fazem <strong>de</strong> engenho com engenho, <strong>de</strong> valor com<br />

valor, <strong>de</strong> formosura com formosura, e <strong>de</strong> linhagem com linhagem, são sempre<br />

odiosas e mal recebidas? Eu, senhor barbeiro, não sou Netuno, <strong>de</strong>us das águas,<br />

nem procuro que ninguém me tenha por discreto, não o sendo; só me canso para<br />

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