07 – Santo Agostinho - Charlezine
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11. Onde então estavas para mim e quão distante? Peregrinava longe de Vós,<br />
excluído até das bolotas dos animais imundos, com que eu os alimentava 102. Quanto<br />
melhores na verdade eram as fábulas dos gramáticos e poetas do que aqueles enganosos<br />
laços !<br />
Com efeito, os versos, o canto e o "vôo de Medéia" são certamente mais úteis que<br />
os cinco elementos do mundo 103, coloridos de mil modos, em razão dos cinco antros de<br />
trevas, que, além de não existirem, matam a quem neles acredita. Porém à poesia e ao<br />
verso transformo-os em delicioso alimento do meu espírito. Além disso, ainda que<br />
cantasse o "vôo de Medéia", contudo, não afirmava a sua autenticidade, e, mesmo ao<br />
ouvi-lo cantar, não lhe dava crédito. Mas — ai! ai de mim! — acreditei nos erros dos<br />
maniqueístas 104. Por que passos ia descendo até ao profundo do inferno, trabalhando e<br />
consumindo-me com a falta da verdade, quando eu Vos procurava!<br />
Meu Deus, a Vós o confesso, a Vós que de mim Vos compadecestes quando<br />
ainda Vos não conhecia, quando Vos buscava não segundo a compreensão da inteligência,<br />
mas segundo o raciocínio da carne.<br />
Vós, porém, éreis mais íntimo que o meu próprio íntimo e mais sublime que o<br />
ápice do meu ser 105! Encontrei aquela mulher audaz e desprovida de prudência, enigma de<br />
Salomão, assentada à porta numa cadeira, a dizer:<br />
"Comei à vontade o pão tomado às escondidas e bebei a doçura da água<br />
roubada 106". Ela me seduziu, porque me encontrou fora de mim, a habitar nos olhos da<br />
minha carne e a ruminar o que por eles tinha devorado.<br />
102<br />
Alusão à parábola do filho pródigo. (N. do T.)<br />
103<br />
Os cinco elementos eram: fumo, trevas, fogo, água e vento. Do fumo nasceram os bípedes; das trevas, as serpentes; do fogo, os<br />
quadrúpedes; da água, os animais que nadam; e do vento, as aves. (<strong>Santo</strong> <strong>Agostinho</strong>, De Haeresibus, cap. XLVI, Opera Omnia, tomo X, 3. a<br />
edição de Veneza, 1797.)<br />
104<br />
O maniqueísmo espalhou-se principalmente pela Pérsia. Egito, Síria, África do Norte e Itália. Esta seita foi fundada por Maniqueu (ou<br />
Manés), o qual , perseguido pelo rei e magos do seu país, a Pérsia, teve de refugiar-se na Mesopotâmia. Voltou à pátria, onde foi esfolado e<br />
atirado às feras.<br />
O maniqueísmo misturava as doutrinas de Zoroastro com o cristianismo. Eis os pontos principais da sua doutrina: Desde toda a<br />
eternidade existem dois princípios, o do bem e o do mal. O primeiro, que se chama Deus, domina o reino da luz, e Ele mesmo é luz<br />
imaculada, que só pela razão e não pelos sentidos se pode perceber. O segundo chama-se Satanás, rei das trevas, e é mau quanto à sua<br />
natureza, pois é matéria infeccionada.<br />
Ambos comunicam a sua substância a outros seres, que são bons ou maus conforme a sua origem. Houve luta entre os reinos da<br />
luz e das trevas. Os demônios arrebataram partículas de luz. Satanás gerou Adão e comunicou-lhe essas partículas, que seriam as almas dos<br />
homens.<br />
Deus, para libertar a luz do cativeiro da matéria, criou, por intermédio dos espíritos antagonistas dos demônios, o Sol e a Lua, os<br />
astros e a terra. Esta é de matéria inteiramente corrompida.<br />
O homem compõe-se de três partes: de corpo, oriundo do mal, de espírito, oriundo de Deus, e de alma insensível, cheia de maus apetites e<br />
dominada por Satanás. Deus enviou Cristo para salvar os homens. O Espírito <strong>Santo</strong>, menor que o Filho, também de substância puríssima,<br />
age beneficamente, ao contrário dos demônios, que só provocam calamidades. Cristo tomou um corpo aparente, e por isso a sua morte não<br />
foi verdadeira. Maniqueu dizia-se o enviado de Deus para completar a obra de Cristo. Os maniqueístas acreditavam na purificação das<br />
almas através de diversos corpos. Deviam castigar o corpo e abster-se, quanto possível, da matéria. Mas os vícios pululavam entre eles... A<br />
seita maniqueísta, para imitar o Colégio Apostólico, tinha à frente um chefe, seguiam-se-lhe doze ministros, setenta e dois bispos, e, por fim,<br />
os diáconos e presbíteros. Celebravam missa sem vinho, festejavam o domingo,Sexta-Feira Santa e o dia de aniversário da morte de Manes.<br />
(Cf. De Haeresibus, cap. XLVI). (N. do T.)<br />
105<br />
Admire-se esta síntese genial acerca da presença de Deus na nossa atividade psicológica. A estas metáforas que <strong>Santo</strong> <strong>Agostinho</strong><br />
emprega para sugerir a idéia do Transcendente alude o filósofo Blondel em L'Action, T. II, Paris, 1936. p. 515. (N. doT.)