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A filha da feiticeira - Paula Brackston

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desesperados. No canto <strong>da</strong> sala, havia um piano vertical e, à direita do que parecia<br />

um grande móvel com gavetas, as portas se abriam para revelar prateleiras vazias.<br />

Os saltos de minhas botas soavam ruidosamente contra o chão de madeira poli<strong>da</strong>.<br />

Caminhei lentamente até a lousa e corri os dedos pela superfície rugosa. O que teria<br />

acontecido com to<strong>da</strong>s aquelas crianças?, eu me perguntava. Onde estariam agora?<br />

Meus pensamentos foram abruptamente interrompidos por uma música<br />

vin<strong>da</strong> do piano. Virei-me. O instrumento estava posicionado em tal ângulo que eu só<br />

podia ver a parte de trás dele, e o pianista estava completamente oculto. A música<br />

não era nenhuma que eu reconhecesse, mas apenas notas, escalas e arpejos. Abri a<br />

boca para chamar Archie, mas algo me fez parar. Não me lembrava de ele ter<br />

mencionado que tocava piano. Embora não houvesse razão para acreditar que ele<br />

não fosse capaz de fazê-lo, algo não se encaixava. Caminhei em direção à música,<br />

sem querer falar e ain<strong>da</strong> não prepara<strong>da</strong> para fugir. E, então, quando estava a apenas<br />

alguns passos do piano de madeira, comecei a perceber uma sintonia entre as notas<br />

aleatórias. Uma canção que eu conhecia bem. Muito bem. “Greensleeves”. Meus<br />

pés recusaram-se a continuar. A adrenalina fluía em minhas veias, enviando choques<br />

até a ponta de meus dedos e fazendo meu coração acelerar sob minhas costelas. Foi<br />

então que comecei a sentir o cheiro azedo e sulfuroso que sentira pela primeira vez<br />

na floresta de Batchcombe, tanto tempo atrás. Meu primeiro pensamento claro foi<br />

censurar-me por ser tão crédula. Eu havia aprendido tão pouco assim em todos<br />

aqueles anos fugindo de meu perseguidor? Teria sido meu instinto de bruxa tão<br />

maculado pela dor e sofrimento <strong>da</strong> guerra que eu não fora capaz de detectá-lo<br />

diante de mim? Parecia que sim. Pois aqui estava eu, não mais do que a poucos<br />

passos <strong>da</strong>quele que queria, no mínimo, a minha destruição e provavelmente a<br />

minha alma. Não havia para onde correr. Não havia na<strong>da</strong> a fazer a não ser encará-lo.<br />

Forcei-me a ir adiante, a caminhar até o piano. Enquanto a melodia repugnante<br />

continuava, consegui ver o pianista, sua cabeça baixa, dobra<strong>da</strong> na concentração<br />

extasia<strong>da</strong> sobre as teclas. Ele se endireitou sem pressa enquanto eu me aproximava<br />

e se virou para sorrir. Era o mesmo sorriso afável com o qual me sau<strong>da</strong>ra na<br />

primeira vez que nos encontramos na trincheira.<br />

— Minha queri<strong>da</strong>, comecei a achar que talvez você não viesse — disse o<br />

tenente Maidstone, enquanto continuava a tocar —, mas então eu deveria ter mais<br />

fé na força do amor ver<strong>da</strong>deiro. — Ele fez a palavra amor soar ridícula, lamentável,<br />

desprezível. Por fim, a música acabou e ele girou sobre o banquinho do piano para<br />

me encarar. Estreitou os olhos. — Você ficou páli<strong>da</strong> e magra, Bess. Esta guerra não<br />

lhe cai bem, acho. Quanto a mim, considero a energia <strong>da</strong>qui... revigorante. —

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