Texto completo em PDF - Museu da Vida
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constata<strong>da</strong> nos trechos a seguir, extraídos de entrevista com o trabalhador rural nordestino<br />
Amaro João <strong>da</strong> Silva, publica<strong>da</strong> nas páginas amarelas de Veja <strong>em</strong> 18 dez<strong>em</strong>bro de 1991.<br />
Veja — Por que o senhor cresceu pouco?<br />
Amaro — É de tanto trabalhar e passar fome. Desde pequeno é assim. Hoje mesmo, já deu meio-dia e eu estou <strong>em</strong> pé<br />
com um copo de café que tomei às 4 <strong>da</strong> manhã. T<strong>em</strong> dia que a gente não sabe se vai comer ou não. Eu e a mulher<br />
<strong>da</strong>mos primeiro a comi<strong>da</strong> para as crianças. Depois, o que sobrar fica para nós.<br />
[...]<br />
Veja — Como o senhor consegue ter forças para trabalhar?<br />
Amaro — O jeito é dormir um bocado para não ter fome. Acordo às 4 horas <strong>da</strong> manhã, tomo café e saio com a<br />
mulher para o trabalho. Depois de duas horas de caminha<strong>da</strong>, a gente chega no lugar do serviço. O t<strong>em</strong>po gasto no<br />
canavial depende <strong>da</strong> época. Se for na colheita, a gente passa o dia arrancando cana. Na época de plantação, como<br />
agora, dá para voltar para casa ao meio-dia. Aí, depois de tomar uma lapa<strong>da</strong> de cachaça, eu almoço, tiro um cochilo<br />
até 2 horas e passo o resto <strong>da</strong> tarde cui<strong>da</strong>ndo <strong>da</strong> minha roça. Quando dá 7 horas <strong>da</strong> noite, eu vou dormir.<br />
Veja — Os seus filhos tomam leite?<br />
Amaro — Os três meninos novinhos tomam, sim. Uma lata t<strong>em</strong> que <strong>da</strong>r para o mês inteiro, então a mulher t<strong>em</strong> que<br />
misturar muita água para durar o mês todo e todos os meninos tomar<strong>em</strong> leite.<br />
[...]<br />
Veja — Qual o futuro que o senhor quer para os seus filhos?<br />
Amaro — Quero que não falt<strong>em</strong> roupa e r<strong>em</strong>édio para eles. E que eles cresçam e cas<strong>em</strong> por aqui mesmo. Mas se<br />
algum quiser ir estu<strong>da</strong>r e trabalhar no Recife, eu deixo.<br />
Veja — Como o senhor os educa?<br />
Amaro — Ensino a respeitar os mais velhos, não tocar no que é alheio e não tirar a vi<strong>da</strong> de ninguém. Às meninas eu<br />
falo que dev<strong>em</strong> casar e tomar conta dos filhos. Digo, também, que eles precisam aprender a ler, escrever e fazer contas<br />
para não ser explorados.<br />
Veja — O senhor sabe fazer contas?<br />
Amaro — Não. Só com dinheiro.<br />
Veja — Sabe ler e escrever?<br />
Amaro —Também não. Há quatro anos, a usina botou uma escola para pessoas adultas. A gente ia de noite, mas durou<br />
pouco t<strong>em</strong>po. A professora casou, foi <strong>em</strong>bora e a escola fechou.<br />
FONTE: Nanne (1991:7-8)<br />
É evidente que os trechos acima não reproduz<strong>em</strong> com fideli<strong>da</strong>de as falas produzi<strong>da</strong>s<br />
durante a entrevista oral. O primeiro indício é a ausência total de hesitações, auto-<br />
correções, truncamento de palavras, entre outras marcas comuns às interações verbais.<br />
Além disso, é admirável a correção sintática dos enunciados que constitu<strong>em</strong> as respostas do<br />
entrevistado. 34 Presumimos que a falta de escolari<strong>da</strong>de do entrevistado levou-o a cometer<br />
vários "deslizes", tanto sintáticos quanto ortoépicos, mas, tudo indica que muitos deles<br />
foram ignorados.<br />
34 'Em nossa opinião, essas modificações independ<strong>em</strong> <strong>da</strong> fluência ou nível de instrução do entrevistado. No<br />
entanto, somente após uma investigação, <strong>em</strong> que pudéss<strong>em</strong>os comparar entrevistas orais com as do tipo<br />
pergunta-resposta publica<strong>da</strong>s na imprensa, é que teríamos respaldo científico para comprovar tal afirmação.<br />
Exatamente por ain<strong>da</strong> não termos <strong>da</strong>dos suficientes para <strong>em</strong>itir um parecer consistente a este respeito,<br />
selecionamos uma entrevista realiza<strong>da</strong> com alguém que não teve acesso à educação formal. Com isso,<br />
quer<strong>em</strong>os destacar que mesmo s<strong>em</strong> conseguirmos identificar exatamente o que foi alterado, só o fato de<br />
sabermos as condições sócio-culturais do entrevistado já nos dá uma idéia de que a estrutura sintática <strong>da</strong>s<br />
respostas não é compatível com o seu nível de escolari<strong>da</strong>de.<br />
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