DA EVISTA CADEMIA INEIRA ETRAS - Academia Mineira de Letras
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Remorso ______________________________________________________________________ Ronaldo Guimarães 245<br />
Lindolfo, o pacato Lindolfo, funcionário <strong>de</strong> carreira do Banco do<br />
Brasil, sem filhos e sem charme, vivia uma vida pacata num pequeno<br />
apartamento sem aparatos, na zona noroeste da cida<strong>de</strong>. De dois quartos e<br />
uma vaga <strong>de</strong> garagem que não tinha serventia. Andava <strong>de</strong> ônibus. Mas<br />
bem que servia. Alugava para o vizinho do 302. Nada, nada, dava pra<br />
salvar a feira do mês. Deus poupou-o da inveja. Admirava o vizinho do<br />
302 com seus dois carros cintilantes. O vizinho atrasava o aluguel da<br />
garagem e ele, constrangido e com remorso, batia à sua porta e<br />
reivindicava sua migalha.<br />
Saía às sete e voltava às sete. Ali, no cronômetro, sem protuberâncias<br />
e sobressaltos. De vez em quando, pensava na tia Beatriz com seu salto<br />
alto, coxas grossas e esmalte vermelho. Ela já tinha passado <strong>de</strong>sta para<br />
uma melhor há algum tempo. No caixão, os <strong>de</strong>dos das mãos entrelaçados<br />
<strong>de</strong> um vermelho Ferrari, segurava o crucifixo. Mãos brancas e sem veias<br />
azuis, contrastava com o crucifixo marrom. Ficou ao lado do caixão toda<br />
a madrugada, acariciando as mãos da tia. Gostava mais dos pés, mas a<br />
família tivera a infeliz idéia <strong>de</strong> enterrá-la com sapato fechado. Infeliz<br />
idéia.<br />
Aquele pé era <strong>de</strong>le, só <strong>de</strong>le, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o afundar singelo e sensual no<br />
pedal da embreagem. No meio da madrugada, velório vazio, teve ímpeto<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>sabotoar o sapato e beijar os pés da tia. Conteve-se. Em vez disso,<br />
recitou, em voz baixa, um poema <strong>de</strong> Olavo Bilac, seu poeta favorito.<br />
Estava bem acompanhado com suas taras.<br />
E tome remorso.<br />
Homem <strong>de</strong> poucas palavras, muitos remorsos e algumas virtu<strong>de</strong>s:<br />
gostava dos Beatles. Tinha todos os elepês da banda. E colecionava a<br />
revista Seleções.<br />
Sentado na “ca<strong>de</strong>ira do papai”, lia a revista e trazia a esposa para o<br />
mundo:<br />
– Marta, você sabia que os esquimós, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as priscas eras, vivem<br />
da pesca e da caça <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s mamíferos como a foca, a morsa, a baleia e<br />
ainda <strong>de</strong> aves e do urso polar?<br />
Marta, que além <strong>de</strong> cerzir, pregava botões e fazia bainha, não sabia<br />
<strong>de</strong> esquimós, nem <strong>de</strong> priscas eras, mas ouvia com atenção.<br />
Revista Volume LI.p65 245<br />
12/5/2009, 15:29