Dramas da clausura: a literatura dramática de Lúcio Cardoso por ...
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Mais do que o <strong>de</strong>sejo <strong>da</strong> viagem, a maior angústia <strong>de</strong> Assur resi<strong>de</strong> em<br />
alcançar uma i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>, um sentido que percebe na vi<strong>da</strong> dos irmãos e que<br />
não enxerga em si mesmo. Não tem vocação para o arado, não se casou, não<br />
cui<strong>da</strong> do rebanho, não tem o dom <strong>da</strong> música. É, como tantos personagens<br />
cardosianos, um ser “<strong>de</strong>slocado”, um “gauche” que, à margem, luta <strong>por</strong> um<br />
espaço no mundo ao qual não consegue se integrar. Sem saber qual papel<br />
<strong>de</strong>sempenhar, <strong>de</strong>spreza os familiares e a casa, mas parece <strong>de</strong>sejar, mais do<br />
que a cunha<strong>da</strong>, as realizações do irmão. No seu sentimento, cresce a inveja<br />
agressiva que se expressa sob a forma <strong>de</strong> <strong>de</strong>sdém e <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo interdito.<br />
Na conversa entre o peregrino, Aíla, Selene e Assur, o recém-chegado<br />
revela que “Este mundo a fora (sic) é muito maior do que se pensa.”<br />
(NASCIMENTO, 1961: 39) e essa <strong>de</strong>claração entristece o jovem, que <strong>de</strong>ixa a<br />
cena a pretexto <strong>de</strong> buscar o Pai para conversar com o peregrino.<br />
Como Selene também <strong>de</strong>ixa o palco, Aíla fica sozinha com o novo<br />
hóspe<strong>de</strong> e aproveita para perguntar-lhe se “É ver<strong>da</strong><strong>de</strong> que os outros são<br />
assim... escuros como nós... que sua pele lisa e negra não reflete senão o<br />
brilho <strong>da</strong> água...” (NASCIMENTO, 1961: 40). Nesse momento, essa voz<br />
feminina trará à tona sua insatisfação, também tão comum entre outras<br />
personagens <strong>de</strong> <strong>Lúcio</strong> <strong>Cardoso</strong>. Aíla, que nasceu e foi cria<strong>da</strong> naquele vale<br />
“com parentes e amigos <strong>da</strong> mesma cor” e que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> menina estava <strong>de</strong>stina<strong>da</strong><br />
a casar-se com Manassés, afirma que, se todos fossem iguais a ela, talvez<br />
então ela não se sentisse “uma coisa grosseira, uma raiz <strong>da</strong> terra, escura e<br />
bruta”. A personagem revelará sua angústia em relação à vi<strong>da</strong> e ao casamento.<br />
Segundo ela, “Deus não se im<strong>por</strong>ta com a gente que cresce no vale. Nunca se<br />
manifestou <strong>por</strong> estes lados nenhum sinal <strong>da</strong> sua graça!” (NASCIMENTO,<br />
1961:40) e que Ele <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>dicar Seus cui<strong>da</strong>dos a criaturas mais belas e<br />
felizes, “seres brancos e <strong>de</strong>licados”.<br />
Para aquietar seu coração, o peregrino lhe assegura que todos no<br />
mundo são como ela, que to<strong>da</strong>s as peles não refletem “outra coisa senão o<br />
brilho rápido <strong>da</strong> água” (NASCIMENTO, 1961:41). Aquieta<strong>da</strong> sua angústia, ela<br />
afirma que aquela noite po<strong>de</strong>rá <strong>de</strong>itar-se ao lado do marido sem ocultar-lhe<br />
nenhum <strong>de</strong>sejo ou sonho no coração: