13.05.2013 Views

Dramas da clausura: a literatura dramática de Lúcio Cardoso por ...

Dramas da clausura: a literatura dramática de Lúcio Cardoso por ...

Dramas da clausura: a literatura dramática de Lúcio Cardoso por ...

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

119<br />

AÍLA: (<strong>de</strong> olhos cerrados, <strong>de</strong>vagar) Quando passava a mão pelo seu<br />

rosto, dizia comigo mesma: pele bruta, pele mais dura do que a terra<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong>nha<strong>da</strong> pela chuva... E no meu coração nascia o <strong>de</strong>sespero, e<br />

eu sonhava com homens brancos e <strong>de</strong>licados, que trouxessem no<br />

pensamento outra idéia que não a <strong>de</strong> arar o campo e aproveitar o<br />

tempo para as sementeiras. (NASCIMENTO, 1961: 41)<br />

Ela acrescenta que quem soprou esses <strong>de</strong>sejos em seu coração foi<br />

Assur ao lhe dizer, um dia, que “escutasse, pois era assim que o vento soprava<br />

do mar” e que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então, quando o vê, seu coração bate mais forte <strong>por</strong>que<br />

ela imagina: “que o vento nasce sobre as claras paisagens do oceano, em<br />

mares e praias cobertas <strong>de</strong> flores amarelas” (NASCIMENTO, 1961: 41-42)<br />

O <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> Aíla é, pois, o <strong>de</strong> conhecer outro <strong>de</strong>stino, outra vi<strong>da</strong> que não<br />

a que lhe reservaram <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a infância (<strong>por</strong>tanto, à revelia <strong>da</strong> sua vonta<strong>de</strong>). Seu<br />

“amor” pelo cunhado repousa mais na angústia que os aproxima que no <strong>de</strong>sejo<br />

físico: ela também não consegue aceitar o papel que lhe foi reservado, não <strong>por</strong><br />

<strong>de</strong>sconhecê-lo (como Assur), mas <strong>por</strong>que ele lhe foi pré-<strong>de</strong>terminado e ela se<br />

viu priva<strong>da</strong> <strong>de</strong> qualquer outra escolha. Se, <strong>por</strong> outro lado, todos fossem como<br />

ela, ou seja, se to<strong>da</strong>s as vi<strong>da</strong>s fossem iguais, então não haveria angústia<br />

<strong>por</strong>que não existiria outra forma <strong>de</strong> realização <strong>por</strong> que ansiar. Mas ela se<br />

atormenta ao imaginar que a vi<strong>da</strong> po<strong>de</strong>ria ser diferente e que essa diferença<br />

pu<strong>de</strong>sse significar maior felici<strong>da</strong><strong>de</strong>:<br />

como po<strong>de</strong>m ser negros como eu os que nascem em terras tão<br />

felizes? Como po<strong>de</strong>m ser ásperos, duros, torcidos como a raiz do<br />

espinheiro que cresce nestas terras? (NASCIMENTO, 1961: 42)<br />

Observe-se que a cor negra, para Aíla, não está relaciona<strong>da</strong> à raça, está<br />

vincula<strong>da</strong> à infelici<strong>da</strong><strong>de</strong> que ela sente. Seu auto-retrato (áspera, dura, torci<strong>da</strong><br />

como a raiz do espinheiro) é <strong>de</strong>preciativo não <strong>por</strong> ter ascendência africana,<br />

mas <strong>por</strong> sua condição existencial vincula<strong>da</strong> àquela terra (como uma raiz). Em<br />

oposição a ela, estão as “criaturas mais belas, mais felizes”, “seres brancos e<br />

<strong>de</strong>licados [<strong>de</strong>] que Deus cui<strong>da</strong>” (NASCIMENTO, 1961:41) e cuja diferença <strong>de</strong><br />

cor apenas acentua a oposição à sua vi<strong>da</strong>. Quando ela lamenta: “E que<br />

po<strong>de</strong>remos produzir nós, tristes seres escuros, cheios <strong>de</strong> amor pela rosa<br />

branca?” confirma seu anseio <strong>de</strong> alcançar um horizonte maior do que aquele

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!