Dramas da clausura: a literatura dramática de Lúcio Cardoso por ...
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com a mulher <strong>de</strong> preto. Uma <strong>da</strong>s falas, embora um pouco longa, serve como<br />
uma espécie <strong>de</strong> “construção em abismo” 81 <strong>da</strong> visão <strong>de</strong> mundo do Autor.<br />
160<br />
A cena se <strong>de</strong>senrola no quarto <strong>de</strong> Pedro que acaba <strong>de</strong> contar ao<br />
mendigo ter provocado a morte <strong>de</strong> uma menina quando também era garoto:<br />
— (...) você se arrepen<strong>de</strong>u?<br />
— Não, jamais consegui. Mas fiquei conhecendo certas coisas que<br />
eu não conhecia antes. Aprendi a caminhar <strong>por</strong> caminhos novos –<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> então, procuro avi<strong>da</strong>mente os limites <strong>da</strong> minha natureza.<br />
— Para que conhecer os limites <strong>da</strong> sua natureza? – perguntou o<br />
mendigo, <strong>de</strong>sta vez com um tom evi<strong>de</strong>ntemente sarcástico.<br />
Pedro sentiu-se chocado com a pergunta. Procurou contemplar o<br />
interlocutor nos olhos.<br />
— Nem eu mesmo sei. Mas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que temos consciência <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>termina<strong>da</strong> coisa, não po<strong>de</strong>mos mais fugir a ela.<br />
De súbito, curvou-se e concluiu apaixona<strong>da</strong>mente:<br />
— Neste caso, essa <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> coisa é a questão dos limites. E sei<br />
que eles existem <strong>por</strong>que sou senhor <strong>de</strong> uma certa dose <strong>de</strong> liber<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />
Mas on<strong>de</strong> são esses limites e até on<strong>de</strong> vae essa liber<strong>da</strong><strong>de</strong>?<br />
(...)<br />
— Os limites! – exclamou. Só a experiencia – experiencia <strong>da</strong>s coisas<br />
que a razão não admite – po<strong>de</strong> estabelecel-os. Um homem que<br />
regressa <strong>da</strong> loucura, é um homem que sabe mais do que aquele que<br />
nunca ficou louco. (CARDOSO, 1936:175-176)<br />
Os limites <strong>da</strong> liber<strong>da</strong><strong>de</strong> e a experiência humana: esses são os gran<strong>de</strong>s<br />
motes <strong>da</strong> escritura cardosiana, que perpassam to<strong>da</strong>s as suas produções, e o<br />
caminho para <strong>de</strong>scobri-los é a “experiencia (sic) <strong>da</strong>s coisas que a razão não<br />
admite”. No universo <strong>de</strong>ste Autor, estamos lançados num mundo <strong>de</strong> paixões e<br />
transgressões que repudiam o senso burguês <strong>de</strong> medi<strong>da</strong> e <strong>de</strong>coro, no qual as<br />
normas sociais <strong>de</strong> com<strong>por</strong>tamento são viola<strong>da</strong>s e on<strong>de</strong> o senso comum e a<br />
crença na Ciência já não fazem sentido.<br />
As visões anteriormente consagra<strong>da</strong>s na Literatura e na tradição teatral<br />
brasileira quanto à relação amorosa, tanto no casamento quanto entre pais e<br />
filhos, à amiza<strong>de</strong> leal, à inocência infantil, à própria religião ou à noção <strong>de</strong> Deus<br />
são postos em xeque. Suas personagens cultivam ódios e invejas, cometem<br />
81 Tomo esta expressão na sua <strong>de</strong>finição mais tradicional, enten<strong>de</strong>ndo-a como: “elemento <strong>de</strong> duplicação<br />
interior – a história <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> história –, a construção em abismo se oferece como procedimento retórico<br />
extremamente válido na produção <strong>de</strong> interessantes jogos <strong>de</strong> reflexos <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> narrativa. Da mesma forma<br />
que os espelhos convexos funcionam na pintura flamenga, redimensionando o espaço frontal e limitado<br />
<strong>da</strong> tela, no romance, histórias encaixa<strong>da</strong>s no discurso-tutor <strong>de</strong>sdobram, <strong>de</strong> maneira às vezes vertiginosa,<br />
os episódios <strong>da</strong> ação central, abrindo ao processo <strong>de</strong> significação uma dimensão insondável.”<br />
(CARVALHO, 1983:6-7)