Dramas da clausura: a literatura dramática de Lúcio Cardoso por ...
Dramas da clausura: a literatura dramática de Lúcio Cardoso por ...
Dramas da clausura: a literatura dramática de Lúcio Cardoso por ...
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Ain<strong>da</strong> no primeiro ato, chega Marcos, que se admira com o abatimento<br />
<strong>de</strong> Isabel. Sua conversa com Augusta prolonga um pouco a sugestão do<br />
maravilhoso já anunciado anteriormente: É isso mesmo, perdi o contato,<br />
<strong>de</strong>sprendi-me <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> como se fosse um fantasma. Uma vonta<strong>de</strong> alheia<br />
se apossou do meu espírito, uma vonta<strong>de</strong> que já não se prendia mais às coisas<br />
concretas <strong>da</strong> terra... (CARDOSO, 1973:14) e o rapaz <strong>de</strong>ixa entrever um leve<br />
antagonismo em relação à irmã mais velha. Sente-se alegre em reencontrar<br />
Lisa, que <strong>de</strong>ixa o quarto para revê-lo, e lembram o passado quando eram<br />
companheiros <strong>de</strong> brinca<strong>de</strong>ira e quando era apaixonado <strong>por</strong> ela.<br />
A conversa entre os dois revela como Silas os manipulava: fingia-se<br />
doente para obrigá-los a cumprir suas vonta<strong>de</strong>s sob ameaça <strong>de</strong> que morreria.<br />
Marcos afirma: No fundo, nós ambos tínhamos medo que ele morresse, esta<br />
era a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> (CARDOSO, 1973:20). Essa é uma fala reveladora, se li<strong>da</strong><br />
naquilo que silencia. É possível <strong>de</strong>preen<strong>de</strong>r, <strong>da</strong> conversa, que o afeto entre<br />
eles <strong>de</strong>sagra<strong>da</strong>va Silas; sabe-se também que o morto aterrorizava a menina e<br />
que ela, apesar disso, se casou com ele, frustrando Marcos e certamente<br />
sofrendo com uma escolha que prolongava as torturas <strong>da</strong> infância. Não é difícil<br />
imaginar o quanto, inconscientemente, ambos tenham <strong>de</strong>sejado a morte <strong>de</strong><br />
Silas. É possível que a culpa <strong>por</strong> <strong>de</strong>sejar a morte do irmão e o amor pela<br />
cunha<strong>da</strong> tenham <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ado a crise <strong>de</strong> Marcos; e que o remorso <strong>por</strong><br />
<strong>de</strong>sejar a morte do marido tenha imposto a Lisa uma forma <strong>de</strong> expiação<br />
compensatória na reclusão a que se impôs. Afinal, a psicanálise ensina que<br />
imitar um morto pela <strong>de</strong>pressão, inibição ou doença po<strong>de</strong> representar uma<br />
punição imposta para expiar fantasias criminosas. Lisa mesma afirma, no<br />
segundo ato: acho que Silas morreu para nos causar remorsos... (CARDOSO,<br />
1973:25).<br />
O ato seguinte acontecerá na mesma noite. Marcos escreve à luz <strong>da</strong><br />
lamparina (CARDOSO, 1973:21), especifica a rubrica. Dessa vez, é Lisa quem<br />
<strong>de</strong>sce as esca<strong>da</strong>s e a conversa trava<strong>da</strong> entre os dois revela-se ambígua, cheia<br />
<strong>de</strong> i<strong>da</strong>s e vin<strong>da</strong>s, afirmações e negativas. O tempo predominante ain<strong>da</strong> é o <strong>da</strong><br />
lembrança.<br />
75