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Dramas da clausura: a literatura dramática de Lúcio Cardoso por ...

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uma hora inteira só <strong>por</strong>que eu esquecera <strong>de</strong> cumprir uma promessa, dirá Lisa –<br />

CARDOSO, 1973:20). Augusta traça o retrato mais rancoroso do morto:<br />

Já é tempo para você compreen<strong>de</strong>r certas coisas, Isabel. É ver<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

que a você ele na<strong>da</strong> fez, na<strong>da</strong> podia fazer a uma criança. Mas o seu<br />

<strong>de</strong>sastre me apanhou em plena moci<strong>da</strong><strong>de</strong>. Vamos, levante a sua<br />

cabeça e olhe-me nos olhos, bem nos olhos. Decerto você não sabe<br />

o que é uma moci<strong>da</strong><strong>de</strong> inteira perdi<strong>da</strong>, pois a moci<strong>da</strong><strong>de</strong> foi sempre<br />

uma coisa ausente <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong>. Mas repito, olhe no fundo dos meus<br />

olhos o que é o <strong>de</strong>sespero concentrado, o fulgor <strong>da</strong>s horas vivi<strong>da</strong>s<br />

numa odiosa solidão, o tormento <strong>de</strong> uma existência estéril, inútil, sem<br />

i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> espécie alguma.<br />

(...)<br />

Pois bem, tudo isso é obra <strong>de</strong> Silas, é o resultado <strong>da</strong> sua que<strong>da</strong>, <strong>da</strong>s<br />

suas fraquezas e do seu tremendo egoísmo. Numa miserável al<strong>de</strong>ia<br />

como esta em que vivemos, na<strong>da</strong> permanece escondido, tudo sobe à<br />

flor <strong>da</strong>s águas como uma on<strong>da</strong> <strong>de</strong> espuma suja. Perdi tudo, até a<br />

minha capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ternura. A ver<strong>da</strong><strong>de</strong> é que até o instante em que<br />

me senti abandona<strong>da</strong> <strong>por</strong> todos, ain<strong>da</strong> não conhecia o mundo, não<br />

sabia como os homens se <strong>de</strong>testam, como se truci<strong>da</strong>m uns aos<br />

outros com tão requinta<strong>da</strong> habili<strong>da</strong><strong>de</strong>...(CARDOSO, 1973:8)<br />

Como se vê, não fica claro qual foi o “mal” que Silas fez à irmã, mas é<br />

explícita sua mágoa. Ela se sente ain<strong>da</strong> vítima do morto e, embora <strong>de</strong>seje viver<br />

sem terror, lançando fora o que já não presta, o que nos impe<strong>de</strong> <strong>de</strong> seguir o<br />

nosso caminho (CARDOSO, 1973:6), limita-se a uma interminável batalha em<br />

que seus atos constituem <strong>de</strong>safios e insultos à memória do morto<br />

consi<strong>de</strong>rando, a si mesma e à família, seres à parte <strong>de</strong>ssa reali<strong>da</strong><strong>de</strong> em que<br />

todos respiram (CARDOSO, 1973:6).<br />

Sua mágoa pelo irmão supera o amor <strong>por</strong> Marcos (Esse é o motivo pelo<br />

qual, <strong>por</strong> ódio a Silas, <strong>de</strong>diquei-me a arrebatar esta última vítima – CARDOSO,<br />

1973:10) e a leva a se <strong>de</strong>sfazer dos objetos do falecido: o jogo <strong>de</strong> marfim,<br />

anteriormente referido e um pequeno relógio. Isabel e, mais tar<strong>de</strong> Marcos,<br />

<strong>da</strong>rão falta dos objetos e Augusta argumentará que precisou vendê-los <strong>por</strong><br />

dinheiro e que está farta <strong>de</strong> viver cerca<strong>da</strong> <strong>de</strong> objetos velhos, já não posso mais<br />

respirar o ar <strong>de</strong> mofo <strong>de</strong>sta casa (CARDOSO, 1973:5). É a segun<strong>da</strong> <strong>clausura</strong>,<br />

<strong>da</strong> própria Augusta, que não consegue se libertar do fantasma do passado e<br />

con<strong>de</strong>na-se a viver numa casa cuja <strong>de</strong>cadência parece mimetizar a sua própria<br />

ruína.<br />

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