o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
o <strong>conto</strong> insolÚVel <strong>de</strong> <strong>Herberto</strong> Hel<strong>de</strong>r: duAs PessoAs<br />
105<br />
pelo rebaixamento físico <strong>de</strong>ssa procura. enquanto isso, no monólogo<br />
interno <strong>do</strong> homem, sua figura é constantemente traduzida numa adjetivação<br />
<strong>de</strong> baixeza, insignificância e fragilida<strong>de</strong>: «pequena», «estranha»,<br />
«substituível», «incerta», «nua», «humilhada» são termos que ele cala<br />
por <strong>de</strong>trás <strong>do</strong> canhestro diálogo. entretanto o rebaixamento físico da<br />
mulher – e moral no subtexto – aponta para o seu anverso mítico: é<br />
inevitável a remissão irônica que sua busca faz à Cin<strong>de</strong>rela, a pobre<br />
<strong>do</strong>nzela que per<strong>de</strong>ra o sapato – objeto simbólico (e isso inclui o plano<br />
sexual) que a levará ao seu príncipe re<strong>de</strong>ntor.<br />
e não é só no entrecruzamento <strong>de</strong> papéis que o intertexto <strong>de</strong><br />
Hamlet estabelece o tal jogo <strong>de</strong> espelhos a que aludimos há pouco.<br />
A personagem <strong>de</strong> Hel<strong>de</strong>r - o homem que se refugia na ficção <strong>de</strong> um<br />
livro que abre, na presença da prostituta – cita o príncipe, aproprian<strong>do</strong>-<br />
-se <strong>de</strong> sua fala, e transpõe-na para a cena que vive no presente. Nesse<br />
momento ele cria um jogo <strong>de</strong> mise-em-abyme: na página aberta <strong>do</strong><br />
livro que está em suas mãos, Hamlet entra em cena abrin<strong>do</strong> também<br />
um livro, quan<strong>do</strong> é interpela<strong>do</strong> por Polônio sobre o que está a ler:<br />
POLONIUS – (...) What <strong>do</strong> you read, my lord?<br />
HAMLeT – Words, words, words.<br />
POLONIUS – What is the matter my lord?<br />
HAMLeT – Between who?<br />
POLONIUS – I mean the matter that you read, my lord.<br />
HAMLeT – Slan<strong>de</strong>rs, sir.<br />
(Shakespeare, 1982: 247-248)<br />
Compare-se o trecho acima com a transposição que o homem,<br />
leitor em duas Pessoas, faz, para a cena que divi<strong>de</strong> com a prostituta:<br />
que le<strong>de</strong>s, meu senhor? – Palavras! Palavras! Palavras! – Mas <strong>de</strong> que se<br />
trata, meu senhor? – entre quem? e Bach ao fun<strong>do</strong>. (...) entre quem?<br />
Ora, aí está: <strong>de</strong>veria ser entre mim e ela, e não palavras, palavras,<br />
palavras – mas um gran<strong>de</strong> assunto. O assunto <strong>de</strong> um empenhamento,<br />
uma <strong>de</strong>voção humana (Hel<strong>de</strong>r, 1994: 158).<br />
A questão reiterada – «entre quem?» – estabelece a ironia, tanto<br />
na cena <strong>de</strong> Hamlet – supon<strong>do</strong> que as palavras não sejam entre o livro<br />
e o Príncipe, mas entre este e Polônio –, como também leva à personagem<br />
<strong>de</strong> Hel<strong>de</strong>r a <strong>de</strong>sarmar a artimanha irônica a que ele mesmo<br />
recorreu ao abrir o seu livro, fugin<strong>do</strong> <strong>de</strong> um diálogo franco entre si e<br />
a mulher com quem mal consegue se comunicar, justamente por refugiar-se<br />
em palavras que mascaram suas verda<strong>de</strong>s mais íntimas.