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o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho

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46 diAcríticA<br />

sentar-se sobre si mesmo <strong>de</strong>voran<strong>do</strong> uma laranja,<br />

pronta,<br />

colhida ao caos, que ela sim ilumina quem a usa,<br />

e é isto: a laranja faz rodar os <strong>de</strong><strong>do</strong>s, torna<br />

leve, pelos <strong>de</strong><strong>do</strong>s,<br />

aquele que a levanta, e tão exacto gosto na língua,<br />

tão transbordante,<br />

dói no fino <strong>do</strong> frio açúcar,<br />

e a laranja levanta tu<strong>do</strong>: luz e <strong>de</strong><strong>do</strong>s, e a pessoa<br />

com a ferida na boca, o gosto<br />

magoa<strong>do</strong> até à pronúncia das expressões mais simples <strong>do</strong> idioma,<br />

golpe a golpe,<br />

como em estrangeiro brutal<br />

ou inexpugnável,<br />

que faz ele? Talha trémula, oh Deus! Lavrada a pau virgem e folha <strong>de</strong> ouro,<br />

mete-lhe os polegares pelos umbigos, <strong>de</strong>vora-a, celebra, embebeda-se,<br />

que escola <strong>de</strong> laranja terrestre não se po<strong>de</strong> mais que esta leveza (id., p. 557)<br />

Na or<strong>de</strong>nação subtilmente narrativa <strong>do</strong> texto, divisam-se os planos,<br />

a movimentação da câmara (que é olho ferozmente poético) a<strong>de</strong>rin<strong>do</strong><br />

ao rasto luminoso da laranja caótica, puxan<strong>do</strong> à boca <strong>de</strong> cena a quase-<br />

-figura ao fun<strong>do</strong>, erguida entretanto em imagem rotativa e transmutativa,<br />

<strong>de</strong> brutal abertura e <strong>de</strong>slocamento da forma (e da forma <strong>do</strong><br />

idioma), até ao gran<strong>de</strong> plano «vivo» da refeição carnal. O que teria<br />

si<strong>do</strong> natureza-morta pintada e hipotética interpelação contemplativa<br />

(a mão-pe<strong>de</strong>stal) é aqui energia à solta, e conduzida: fluxo, ritmo,<br />

acto, trabalho da luz, laranja. A laranja é monstruosamente operatória<br />

(cf. Hel<strong>de</strong>r, p. 414), ininterrupto trabalho <strong>de</strong> imagens <strong>de</strong>sentranhan<strong>do</strong>-se<br />

continuamente <strong>de</strong> si próprias. Cicatrizes <strong>de</strong> cicatrizes<br />

(«escrevi a imagem que era a cicatriz <strong>de</strong> outra imagem.» id., p. 438).<br />

em suma: beleza.<br />

Não é <strong>do</strong>m a beleza, mas exercício extremo: «até que Deus é<br />

<strong>de</strong>struí<strong>do</strong> pelo extremo exercício da beleza», assim se começa nesse<br />

último livro <strong>de</strong> poemas. Como observou Rubim (2008), a ênfase não é<br />

<strong>de</strong> to<strong>do</strong> aqui esteticista; mas muito mais traumatizante, quiçá, segun<strong>do</strong><br />

Diogo (2001: 187), naquele senti<strong>do</strong> carnivoramente arcaico – ou talvez,<br />

ou também, atrevo-me agora a sugerir, barroco? – que a violência<br />

metamórfica da imagem cinematográfica po<strong>de</strong>rá reaver. A beleza «em<br />

longitu<strong>de</strong>» <strong>de</strong> H.H., como certeiramente a <strong>de</strong>signou Diogo (id., p. 188),<br />

é truculenta: sombrio ofício <strong>de</strong> instaurar o corpo contra Deus, refluidamente,<br />

<strong>de</strong>sfechadamente, no labor baptismal <strong>de</strong> cada poema. O verso

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