o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
A «AntroPófAgA festA» 11<br />
não operou a carnificina silencia<strong>do</strong>ra da obra, mas transformou-a.<br />
O trabalho poético passou a configurar-se como uma nomeação efusiva<br />
da morte, ven<strong>do</strong> «o suicídio <strong>de</strong> vários la<strong>do</strong>s» (i<strong>de</strong>m, 127). Após 1968,<br />
mais <strong>do</strong> que encontrar o fim, a obra <strong>de</strong> <strong>Herberto</strong> Hel<strong>de</strong>r alimentou-se<br />
<strong>de</strong>ssa nomeação, <strong>de</strong>bruçan<strong>do</strong>-se sobre o seu próprio corpo e perpetuan<strong>do</strong><br />
a existência nessa mesma especulação. A metapoesia po<strong>de</strong> ser<br />
a i<strong>de</strong>ia por <strong>de</strong>trás <strong>do</strong> título Antropofagias. O conjunto <strong>de</strong> textos <strong>de</strong> 1971<br />
não é o único que expõe o movimento auto-especulativo <strong>do</strong> poeta.<br />
No livro Photomaton & Vox, é possível encontrar uma constelação <strong>de</strong><br />
textos que, pelo seu pen<strong>do</strong>r metapoético e varieda<strong>de</strong> genológica, se<br />
relacionam com os <strong>de</strong> Antropofagias, ou com os seus segui<strong>do</strong>res etc.<br />
(1974) e exemplos (1977). Também a publicação <strong>de</strong> cobra (1975-76)<br />
equacionou a i<strong>de</strong>ia da morte poética e da tendência literária para<br />
apontar a falibilida<strong>de</strong> expressiva. Assim se compreen<strong>de</strong> que o poeta<br />
questionasse a valida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma citação <strong>de</strong> tal poema: «o que é citável<br />
<strong>de</strong> um livro, <strong>de</strong> um autor? Decerto, a sua morte po<strong>de</strong> ser citável.<br />
e, sobretu<strong>do</strong>, o seu silêncio» (Hel<strong>de</strong>r, 1978: 46).<br />
É na face silenciosa e apaixonante da palavra que se fixa o olhar<br />
<strong>de</strong> <strong>Herberto</strong> Hel<strong>de</strong>r. Do outro la<strong>do</strong> da linguagem, há uma energeia que o<br />
poeta, leitor <strong>de</strong> si mesmo, procura no exercício metapoético. O alvo <strong>de</strong><br />
tal <strong>de</strong>manda situa-se muito mais no plano primário <strong>do</strong> que na superfície<br />
civilizada <strong>de</strong> uma língua e há uma vonta<strong>de</strong> expressa <strong>de</strong> encontrar<br />
um impulso selvagem por <strong>de</strong>trás <strong>do</strong> rosto humano das palavras:<br />
Force-se alguém a afastar as palavras, essa folhagem <strong>de</strong> ouro implantada<br />
nos olhos e nos ouvi<strong>do</strong>s, para <strong>de</strong>scobrir o rosto zoológico que nem uma<br />
câmara <strong>de</strong> filmar tornaria capturável e <strong>do</strong>méstico (Hel<strong>de</strong>r, 2006a: 152).<br />
este movimento <strong>do</strong> poeta e <strong>do</strong> leitor na direcção <strong>de</strong> uma «selvática»<br />
(Hel<strong>de</strong>r, 2009: 287) matéria poética abre caminho para a metáfora<br />
antropofágica como esboço <strong>de</strong> uma teoria da poesia, ou seja, como<br />
contributo para o <strong>de</strong>senho <strong>de</strong> uma ars poetica em <strong>Herberto</strong> Hel<strong>de</strong>r. Tal<br />
como o acto canibal alia a barbárie e a civilização, também a poesia <strong>de</strong><br />
<strong>Herberto</strong> sublima a fusão entre a nossa dimensão zoológica e humana.<br />
A antropofagia conhecida na América consistia num acto <strong>de</strong> natureza<br />
tribal infligi<strong>do</strong> contra o inimigo, como afirmação <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, ou,<br />
<strong>de</strong>ntro da própria tribo, visan<strong>do</strong> a protecção <strong>do</strong> grupo contra forças<br />
sobrenaturais. em qualquer um <strong>do</strong>s casos, a <strong>de</strong>voração era singular e<br />
profundamente simbólica, concretizan<strong>do</strong> uma transferência <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r<br />
<strong>do</strong> <strong>de</strong>vora<strong>do</strong> para o <strong>de</strong>vora<strong>do</strong>r que assim se fortalecia. Também aqui<br />
há um paralelo com a poesia, ancestralmente ligada à magia ou à reli-