o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
32 diAcríticA<br />
vem a referir Hel<strong>de</strong>r a técnica cinematográfica, mais além, neste texto<br />
inédito <strong>de</strong> 98 que intitula «cinemas». O plural convoca particulares<br />
afinida<strong>de</strong>s com a escrita que a sua poesia sempre acalentou: «A escrita<br />
não substitui o cinema nem o imita, mas a técnica <strong>do</strong> cinema, enquanto<br />
ofício propiciatório, suscita mo<strong>do</strong>s esferográficos <strong>de</strong> fazer e celebrar»<br />
(id.). Passam tais mo<strong>do</strong>s pela prática <strong>de</strong> uma «sabe<strong>do</strong>ria <strong>de</strong> olhar» e<br />
<strong>de</strong> «ver» assente numa «atenção ar<strong>de</strong>nte» (id.). Ardência será, ainda,<br />
a<strong>de</strong>rência, posto que <strong>de</strong>snecessitada ou <strong>de</strong>sentendida da visibilida<strong>de</strong><br />
(à superfície), e da continuida<strong>de</strong> ou da contiguida<strong>de</strong> normaliza<strong>do</strong>ra e<br />
homogeneiza<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> visível. Os olhos, na poesia <strong>de</strong> Hel<strong>de</strong>r, trabalham<br />
no abismo, abrupta e mergulhadamente:<br />
[…] Nada<strong>do</strong>r louco, vertical,<br />
sôfrego,<br />
só abre os olhos no abismo. Só quan<strong>do</strong> fica<br />
cego, entre varais <strong>de</strong> sal, no fun<strong>do</strong>.<br />
quan<strong>do</strong> é uma bolha, ele to<strong>do</strong>, luzin<strong>do</strong> <strong>do</strong>s pulmões à cabeça<br />
bêbeda. Ou entre as natações<br />
que mão a mão tecem no bloco frígi<strong>do</strong> as corolas<br />
velocíssimas. É uma arte da síncope,<br />
arborescente, uma tão íngreme<br />
arte <strong>de</strong> cegar frente às pálpebras das ostras.<br />
e os olhos <strong>de</strong>frontam as pupilas<br />
hipnóticas, difíceis. essa arte <strong>de</strong> lunação<br />
das pérolas. Uma arte <strong>de</strong> olhar revôlta, abrupta,<br />
mergulhadamente.<br />
De cegar quem as olha. (Hel<strong>de</strong>r, p. 431)<br />
O confronto medusante, que repõe sacrificialmente (as pupilas<br />
são difíceis) a correlativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> agentes perceptivos, dir-se-ia ali<br />
sobrepor uma experiência-limite a uma representação-limite (aquilo<br />
que, no contexto específico da pintura contra-reformista espanhola,<br />
Stoichita faria correspon<strong>de</strong>r justamente ao quadro <strong>de</strong> visão 13 ): a<br />
a película não só regista como incorpora ela própria o espaço-tempo <strong>de</strong> uma experiência<br />
contemplativa e meditativa, física e metafísica, traçan<strong>do</strong>-se ao ritmo <strong>do</strong>s trajectos<br />
perceptivos/corporais/passionais que se estabelecem entre o olho da câmara, por um<br />
la<strong>do</strong>, e, por outro, o da estátua <strong>de</strong> Michelangelo, o <strong>do</strong> seu observa<strong>do</strong>r interno que é,<br />
também ele, Michelangelo (Antonioni), e finalmente o <strong>do</strong> especta<strong>do</strong>r, fora <strong>do</strong> filme,<br />
emaranha<strong>do</strong> na re<strong>de</strong> táctil <strong>do</strong>s olhares e <strong>do</strong>s enigmas.<br />
13 Retomo aqui as conclusões finais <strong>de</strong> Victor Stoichita a propósito da representação<br />
da experiência visionária, no caso particular <strong>do</strong> quadro <strong>de</strong> visão seiscentista:<br />
«el interés <strong>de</strong> los cuadros que representan una visión resi<strong>de</strong> en el problemático estatus<br />
<strong>de</strong> la imagen en relación con su objeto. […]. este caso limite <strong>de</strong> figuración (el cuadro <strong>de</strong>