o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
176 diAcríticA<br />
mala?), sen<strong>do</strong> por conseguinte infinito o movimento <strong>de</strong> arrumar.<br />
A mesma alusão ao movimento infinito da arrumação (o romântico<br />
pensar <strong>do</strong> pensar, infinitamente potencia<strong>do</strong>) está presente em «quasi»<br />
(AC): «Produtos românticos, nós to<strong>do</strong>s… / e se não fossemos pro-<br />
dutos românticos se calhar não seríamos nada. // Assim se faz a literatura…<br />
/ Coitadinhos Deuses, assim até se faz a vida!» Arrumação absoluta<br />
não há: «Como um <strong>de</strong>us, não arrumei nem a verda<strong>de</strong> nem a vida».<br />
O jogo <strong>do</strong> poema, aquilo em que ele é tarefa <strong>de</strong> arrumação, cálculo<br />
<strong>de</strong> uma organização (arrumação), falha, mas não fica apenas a verifi-<br />
cação disso, <strong>de</strong> uma falha que nem sequer é falha, pois esta apenas<br />
existe na hipótese <strong>de</strong> sucesso. O que fica são os versos, aquilo on<strong>de</strong><br />
o excessivo se eterniza quan<strong>do</strong> o «eu» toma distância <strong>de</strong> si: («quasi»,<br />
A.C.) «e o meu cansaço é um barco velho que apodrece na praia<br />
<strong>de</strong>serta, / e com esta imagem <strong>de</strong> qualquer outro poeta fecho a secretária<br />
e o poema». Sem heroísmo, nem lamento, como o <strong>do</strong>no da tabacaria<br />
ao fechar a porta até ao dia seguinte, o poeta fecha o poema que<br />
reabre no poema seguinte. e os seus cálculos? Como em la fausse<br />
monnaie, <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire, aquele que preten<strong>de</strong> atingir a verda<strong>de</strong> pelo<br />
cálculo, per<strong>de</strong>-se no <strong>de</strong>vaneio que o faz «chercher midi à catorze<br />
heures», mas o outro, aquele que calcula exactamente, que distribui<br />
a<strong>de</strong>quadamente as moedas pelos bolsos e quer matar <strong>do</strong>is coelhos <strong>de</strong><br />
uma cajadada, ser económico e ganhar o céu, <strong>de</strong>sconhece o jogo das<br />
distinções enquanto distinção das situações em bem e mal, pelo que<br />
faz o mal por estupi<strong>de</strong>z. No entanto, se um for o duplo ou <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bramento<br />
<strong>do</strong> outro, cálculo e <strong>de</strong>vaneio estão em conexão.<br />
No texto «estilo», o narra<strong>do</strong>r diz ter arranja<strong>do</strong> o seu estilo «estudan<strong>do</strong><br />
matemática e ouvin<strong>do</strong> um pouco <strong>de</strong> música. – João Sebastião<br />
Bach». Mas o que ele arranjou afinal não foi um estilo, foi a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong><br />
que é preciso ter um estilo: «É simples: quan<strong>do</strong> acor<strong>do</strong> aterroriza<strong>do</strong>,<br />
ven<strong>do</strong> as gran<strong>de</strong>s sombras incompreensíveis erguerem-se no meio<br />
<strong>do</strong> quarto, quan<strong>do</strong> a pequena luz se faz na ponta <strong>do</strong>s <strong>de</strong><strong>do</strong>s, e toda a<br />
imensa melancolia <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> parece subir <strong>do</strong> sangue com a sua voz<br />
obscura… Começo a fazer o meu estilo». A luz «faz-se na ponta <strong>do</strong>s<br />
<strong>de</strong><strong>do</strong>s», na escrita. Aí se conecta o terror e o enlouquecer que permite<br />
vivê-lo sem <strong>de</strong>le morrer. Como na artimanha <strong>de</strong> Ulisses face às sereias,<br />
«em coisas <strong>de</strong> poesia» as crianças «ficam presas», imóveis, reúnem-se<br />
à eternida<strong>de</strong> que as acolhe no seu serem crianças-sereias, princípio <strong>de</strong><br />
individuação e relação com o exterior, encontro <strong>do</strong> abismo e da distância,<br />
o alto <strong>do</strong> mastro <strong>do</strong> navio.<br />
Na artimanha há um fazer <strong>de</strong> conta que se enlouquece («se eu<br />
quisesse enlouquecia», dirá uma criança), que po<strong>de</strong> coincidir com o