o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
A FACA NÃO CORTA O FOGO: conteXtos Poéticos <strong>de</strong> umA biogrAfiA<br />
uma leitura superficial. Mas este apetrechamento vocabular, fonético,<br />
<strong>de</strong> concordância, não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> representar uma camada irónica que<br />
sub-repticiamente permite, como veremos, a consolidação <strong>de</strong> uma<br />
outra mensagem.<br />
Da leitura <strong>do</strong> livro e a propósito da preocupação <strong>do</strong> poeta por<br />
temas ou palavras <strong>de</strong> aparente e circunstancial senti<strong>do</strong> comum e uso<br />
diário refira-se, nos seus poemas, a título <strong>de</strong> exemplo, a «bic cristal<br />
preta» (563 e 607) ou a «bic preta» (606) ou «preto bic <strong>do</strong> escrito» (581)<br />
ou simplesmente «bic» (580). A leveza <strong>do</strong> poema expressa, pelo trivial<br />
utensílio da escrita, uma con<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte disponibilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> poeta<br />
para exprimir, sem criar expectativas, o dizer chão, comum, porque<br />
afinal o objecto utiliza<strong>do</strong> é também <strong>do</strong> conhecimento <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s. Será<br />
que toda a «bic» está preparada para referir a realida<strong>de</strong> <strong>do</strong> mesmo<br />
mo<strong>do</strong> e com a mesma profundida<strong>de</strong>? Ou talvez se <strong>de</strong>va formular a<br />
pergunta noutros termos: será que a «bic» escreve <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com o<br />
olhar que tem quem a utiliza para falar <strong>do</strong> quotidiano? Na verda<strong>de</strong>,<br />
está disponível para escrever «imemorialmente / o milagre quotidiano<br />
da transmutação <strong>do</strong>s corpos» (568), porque a poesia se encontra no<br />
quotidiano, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que se esteja atento às coisas e, nesta circunstância,<br />
o poeta refere-se aos legumes que utiliza na cozinha para confeccionar<br />
os alimentos.<br />
As palavras e as situações po<strong>de</strong>m ser comuns, os objectos po<strong>de</strong>m<br />
ser os mais utiliza<strong>do</strong>s, no entanto, existe a intenção, a paixão, a capacida<strong>de</strong><br />
que distingue o artista e por isso também o canteiro afirma «que<br />
não lavra só uma pedra / (…) / eu faço numa pedra a catedral inteira»<br />
(572), mesmo que, obviamente, a catedral toda não se encontre fisicamente<br />
na pedra. Não <strong>de</strong>ixa, porém, a pedra <strong>de</strong> representar, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />
trabalhada, essa unida<strong>de</strong>, essa perfeição e entrega, capaz <strong>de</strong> exprimir a<br />
harmonia que está muito para além da realida<strong>de</strong> comum. A socieda<strong>de</strong><br />
contemporânea encontra-se repleta <strong>de</strong> objectos, dispersam-se as pessoas,<br />
per<strong>de</strong>m-se no circunstancial e por isso assumem um rumo muito<br />
distinto daquele que o poeta insiste em seguir.<br />
homens e mulheres per<strong>de</strong>m a aura<br />
na usura,<br />
na política,<br />
no comércio,<br />
na indústria,<br />
<strong>de</strong><strong>do</strong>s conexos, há <strong>de</strong><strong>do</strong>s que se inspiram nos objectos à espera,<br />
trémulos objectos entran<strong>do</strong> e sain<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong>s <strong>de</strong>z tão poucos <strong>de</strong><strong>do</strong>s para tantos<br />
objectos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />
75