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o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho

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12 diAcríticA<br />

gião, como um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> enfrentar, subjugar ou tocar o divino. Tanto um<br />

ritual antropofágico como um poema são regula<strong>do</strong>s por convenções e,<br />

no caso <strong>do</strong> último, há leis versificatórias ou retóricas que o condicionam,<br />

mesmo que o grau <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> formal seja eleva<strong>do</strong>. A natureza<br />

comunitária é outro <strong>do</strong>s traços que ligam antropofagia e poesia, uma<br />

vez que uma e outra pressupõem a partilha <strong>de</strong> um alimento espiritual,<br />

num ritual festivo on<strong>de</strong> o espectáculo da morte <strong>de</strong>flagra uma alegria<br />

no vence<strong>do</strong>r, que se banqueteia com o corpo <strong>do</strong> outro. Para <strong>Herberto</strong><br />

Hel<strong>de</strong>r, o po<strong>de</strong>r regenera<strong>do</strong>r <strong>do</strong> canibalismo é perpetua<strong>do</strong> «por <strong>de</strong>ntro<br />

<strong>de</strong> poemas» (Hel<strong>de</strong>r, 2006a: 153). eles contêm, assim, um po<strong>de</strong>r simultaneamente<br />

<strong>de</strong>strui<strong>do</strong>r e salvífico. O acto antropofágico é uma situação<br />

excepcional que confronta o Homem consigo mesmo, expon<strong>do</strong>-lhe, no<br />

corpo da vítima, a sua própria fragilida<strong>de</strong> e permitin<strong>do</strong>-lhe, na <strong>de</strong>voração,<br />

uma vitória contra a morte. Também o poeta que se olha a si<br />

próprio em Antropofagias se encontra nesse limite da sobrevivência.<br />

Vive da observação <strong>de</strong> actos alimentares enca<strong>de</strong>a<strong>do</strong>s em que o poeta, o<br />

poema e o leitor são <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>s por máscaras canibalescas.<br />

1.<br />

o poeta antropófago<br />

No circuito poético, há uma primeira fagia, no momento que<br />

antece<strong>de</strong> a criação <strong>do</strong> poema. Correspon<strong>de</strong> à experiência <strong>do</strong> sujeito,<br />

autor em <strong>de</strong>vir, ainda jovem, em <strong>de</strong>scoberta inaugural <strong>de</strong> si mesmo no<br />

confronto com o mun<strong>do</strong>. em «Brandy», <strong>de</strong> Passos em Volta, uma <strong>de</strong>voração<br />

ávida caracteriza uma fase inicial da biografia <strong>do</strong> sujeito:<br />

Tu<strong>do</strong> estava cheio, porque o meu coração ávi<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> recebia: era um<br />

espaço palpitantemente vazio. Agora não, agora estou cheio <strong>de</strong> pessoas,<br />

lugares, acontecimentos, i<strong>de</strong>ias e in<strong>de</strong>cisões. (…) que angustiosa, esta<br />

voracida<strong>de</strong>, esta fusão analfabeta com a instável matéria <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>!<br />

Agora sou inteligente. existo, existe o universo (Hel<strong>de</strong>r, 2006b: 181-182).<br />

É necessário <strong>de</strong>vorar para existir e para integrar a «instável matéria<br />

<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>». Pessoas, lugares e acontecimentos transitam <strong>do</strong> exterior<br />

para o interior, como que numa primeira morte, passan<strong>do</strong> assim<br />

a viver no plano íntimo <strong>do</strong> sujeito. Dessa voracida<strong>de</strong> inicial, resulta<br />

um caos pessoal que reclama uma organização. Ce<strong>do</strong> vem a resposta<br />

à <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m e a digestão processa-se em fantasia e escrita. O homem<br />

embriaga<strong>do</strong> <strong>de</strong> «Brandy» explica-o ao emprega<strong>do</strong> <strong>de</strong> balcão: «Todas as<br />

noites inventava as mulheres, uma gran<strong>de</strong> mulher perfeita, a mestra

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