15.04.2013 Views

o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho

o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho

o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

«e o temPo não PAssA»: As cArtAs dA guerrA <strong>de</strong> António lobo Antunes<br />

267<br />

to<strong>do</strong> <strong>do</strong> outro, mas também o <strong>de</strong>sejo explicitamente sexual, que não se<br />

dirige menos ao to<strong>do</strong> <strong>do</strong> outro – relembre-se que a fórmula <strong>de</strong>ste amor<br />

é «Gosto tu<strong>do</strong> <strong>de</strong> ti».<br />

Ora, é precisamente na expressão <strong>de</strong>sta intimida<strong>de</strong> que mais<br />

sentimos o obstáculo da linguagem, não apenas pela linguagem em si<br />

mesma mas pelo peso da época nela, quer dizer, pela distância a que<br />

já estamos <strong>de</strong>ssas codificações. A intimida<strong>de</strong>, e sobretu<strong>do</strong> a intimida<strong>de</strong><br />

dita em palavras, não escapa à codificação epocal, como nada aliás<br />

escapa. É certo que nestas cartas há termos que transitam <strong>do</strong> estrito<br />

calão para o <strong>do</strong>mínio da linguagem quotidiana <strong>do</strong>s afectos («merda»<br />

e «caralho» são os exemplos mais óbvios), mas quan<strong>do</strong> chegamos à<br />

esfera da sexualida<strong>de</strong>, ou tropeçamos em algumas expressões que ficam<br />

a meio caminho entre a nomenclatura médica e a metafórica falhada,<br />

como esse «coloco o meu pénis na forquilha <strong>do</strong> teu corpo» (CG: 25),<br />

ou reencontramos o erotismo eciano: «eu sinto-me mais teu amante<br />

<strong>do</strong> que teu mari<strong>do</strong>: cada vez que penso em ti relambo os beiços.» (CG:<br />

274). em to<strong>do</strong> o caso, este erotismo eciano <strong>de</strong>sagua já <strong>de</strong>scomplexadamente<br />

no movimento da transformação <strong>do</strong>s costumes: esta é a geração<br />

da pílula, que ALA pe<strong>de</strong> que Maria José vá toman<strong>do</strong> para o seu reencontro<br />

nas férias. Mas os seus efeitos na recodificação <strong>do</strong> imaginário<br />

<strong>do</strong> casal, como por exemplo o <strong>de</strong> fundir num só os papéis <strong>de</strong> mari<strong>do</strong><br />

e amante, se são porventura já vivi<strong>do</strong>s, ainda não encontraram uma<br />

linguagem que os diga. Assim, o que vai funcionan<strong>do</strong> melhor nas<br />

cartas é o amor <strong>de</strong>ntro da linguagem já estabilizada, mas que nem<br />

por isso diz menos o amor: essas pequenas notações <strong>do</strong> transcurso <strong>de</strong><br />

um tempo que liga – «ao sexto mês <strong>de</strong> casamento gosto muito mais<br />

<strong>de</strong> ti» (CG: 46); «renovo as minhas promessas <strong>de</strong> crisma: amo-te»<br />

(CG: 172) –, ou esse <strong>de</strong>linear <strong>de</strong> um território mais que priva<strong>do</strong> que<br />

seria usarem expressões <strong>de</strong> amor em bun<strong>do</strong> (cf. CG: 65); ou, mais<br />

ainda, essa sensualida<strong>de</strong> que se imagina apaziguada pelo reencontro,<br />

carnalida<strong>de</strong> consciente e jubilosa que nem o jardim edénico se atreveu<br />

a imaginar: «<strong>do</strong>rmirmos juntos, peito contra peito, ventre contra ventre<br />

e coxas contra coxas, fazen<strong>do</strong>-nos cócegas nos pés» (CG: 122).<br />

Depois das férias, em que finalmente conhece a filha entretanto<br />

nascida, e enquanto planeia a ida da família para Angola, para se<br />

lhe juntar, ou quan<strong>do</strong>, já lá viven<strong>do</strong>, se têm brevemente <strong>de</strong> separar, a<br />

veemência <strong>do</strong> protesto <strong>de</strong> amor e <strong>do</strong> peso da solidão nunca se atenuam.<br />

Ao mesmo tempo que há uma clara percepção <strong>do</strong> excesso disso – «Se<br />

não fosse ter me<strong>do</strong> <strong>de</strong> te enterrar <strong>de</strong>baixo da minha paixão não te falava<br />

<strong>de</strong> outra coisa» (CG: 287); «Meu Deus como eu gosto <strong>de</strong> ti! quase me

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!