15.04.2013 Views

o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho

o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho

o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

em que línguA escreVe <strong>Herberto</strong> Hel<strong>de</strong>r?<br />

155<br />

tu<strong>do</strong> a faca cortará: ela corta a veia jugular, ou os pulsos, e matará<br />

com mais certeza o corpo <strong>de</strong>stina<strong>do</strong> a morrer. Mas – e voltemos ao<br />

início <strong>do</strong> outro <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is poemas que estou a citar – «a faca não corta o<br />

fogo, / não me corta o sangue escrito, / não corta a água,» o que sugere<br />

que há uma condição, e um sangue, que, tal como o fogo ou a água,<br />

a faca (e aqui, em vez <strong>de</strong> faca po<strong>de</strong>ria dizer morte) não po<strong>de</strong>rá cortar:<br />

o «sangue escrito», afim <strong>do</strong> fogo e da água, é impermeável a essa faca<br />

(e repare-se no uso lírico <strong>do</strong> pronome pessoal em «não me corta o<br />

sangue escrito», bem como na figuração <strong>de</strong> autoria implicada pela evocação<br />

<strong>do</strong> acto <strong>de</strong> escrita). Neste contexto, é importante ter em conta o<br />

quanto é aparente a ruptura temática introduzida pelo verso seguinte:<br />

a faca não corta o fogo,<br />

não me corta o sangue escrito,<br />

não corta a água,<br />

e quem não queria uma língua <strong>de</strong>ntro da própria língua?<br />

(572)<br />

essa «língua <strong>de</strong>ntro da própria língua», que <strong>Herberto</strong> Hel<strong>de</strong>r<br />

também <strong>de</strong>signa muitas vezes por «idioma», acentuan<strong>do</strong> a sua autonomia<br />

e especificida<strong>de</strong> relativamente à língua-mãe, é a poesia – e a língua<br />

<strong>de</strong> uma poesia específica, e feita por um só poeta, como veremos –,<br />

pelo que está semanticamente ligada à imagem <strong>do</strong> «sangue escrito»,<br />

por uma relação <strong>de</strong> equivalência. De resto, assim o sugere o mo<strong>do</strong><br />

como esta formulação é aproximável <strong>de</strong> uma conhecida reflexão <strong>de</strong><br />

Paul Valéry, na qual é equacionada uma questão que gostaria <strong>de</strong> <strong>de</strong>stacar.<br />

É certo que <strong>Herberto</strong> Hel<strong>de</strong>r <strong>de</strong>ixa muito claro o seu pouco<br />

apreço por este «intelectual francês», 6 mas, em «Situation <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire»,<br />

Valéry explicita <strong>de</strong> uma maneira que aqui me interessa a relação<br />

entre a construção <strong>de</strong> uma língua <strong>de</strong> segun<strong>do</strong> grau, pelo apuramento e<br />

magnificação da língua <strong>de</strong> partida, e a emergência <strong>de</strong> uma subjectivida<strong>de</strong><br />

outra, por intensificação da experiência subjectiva:<br />

Le poète se consacre et se consume (...) à définir et à construire un langage<br />

dans le langage; et son opération, qui est longue, difficile, délicate,<br />

qui <strong>de</strong>man<strong>de</strong> les qualités les plus diverses <strong>de</strong> l’esprit, et que jamais n’est<br />

achevée comme jamais elle n’est exactement possible, tend à constituer<br />

6 Na entrevista publicada pela revista inimigo rumor, <strong>Herberto</strong> Hel<strong>de</strong>r não <strong>de</strong>ixa<br />

dúvidas quanto à sua aversão por Paul Valéry, ao afirmar que ele «representa aquilo<br />

mesmo que po<strong>de</strong> servir <strong>de</strong> insulto contra qualquer pessoa: você é um intelectual francês!»<br />

(Hel<strong>de</strong>r, 2001a: 193).

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!