o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
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«e o temPo não PAssA»: As cArtAs dA guerrA <strong>de</strong> António lobo Antunes<br />
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<strong>de</strong>vi<strong>do</strong> mais às armadilhas afectivas propiciadas por estas situações <strong>de</strong><br />
guerra <strong>do</strong> que por consequência directa <strong>de</strong>sses mesmos <strong>de</strong>feitos.<br />
Também aqui encontramos a carta «típica» <strong>do</strong> solda<strong>do</strong> enterra<strong>do</strong><br />
vivo na lonjura da guerra, e que num misto <strong>de</strong> altruísmo orgulhoso e<br />
ressentimento liberta o outro <strong>do</strong> vínculo <strong>de</strong> que ele <strong>de</strong>sesperadamente<br />
necessita:<br />
A distância apaga muita coisa, e <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> alguns meses terás, talvez,<br />
esqueci<strong>do</strong> até o som da minha voz. Não te julgues, se não o quiseres,<br />
amarrada a mim por qualquer vínculo. Nada te impe<strong>de</strong> <strong>de</strong> fazeres o que<br />
quiseres, se o quiseres fazer. (...) És inteiramente livre, e não quereria<br />
nunca que te pren<strong>de</strong>sses a um morto, se eu morrer, ou a um vivo, se eu<br />
<strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> te interessar (CG; 43).<br />
A <strong>do</strong>r <strong>de</strong>stes equívocos não se esvai com o facto <strong>de</strong> eles serem<br />
imediatamente <strong>de</strong>sfeitos. Apenas se transforma numa litania mais<br />
profunda, porque subjacente ao próprio transcorrer <strong>do</strong> tempo <strong>de</strong> separação,<br />
e torna-se mais <strong>de</strong>samparada porque pressente e interroga o<br />
quanto <strong>de</strong> fantasma haverá já na distância que têm <strong>de</strong> suportar:<br />
Ainda te lembrarás <strong>de</strong> mim? Deve ser horrível, para ti, que vives num<br />
mun<strong>do</strong> agradável e quotidiano, estar casada com uma sombra... Tenho<br />
a impressão que as minhas cartas <strong>de</strong>vem parecer vir <strong>de</strong> um universo<br />
irreal e gasoso, como as mensagens espíritas <strong>do</strong>s mortos. Não <strong>de</strong>vo ter<br />
espessura, consistência humana, penso (CG: 182).<br />
estas palavras são escritas em 1 <strong>de</strong> Junho <strong>de</strong> 71, cinco meses<br />
<strong>de</strong>pois da partida. exactamente um mês <strong>de</strong>pois, a pergunta volta.<br />
O fantasma <strong>de</strong> ALA é agora inequívoco aos seus próprios olhos, mas<br />
como teologicamente se po<strong>de</strong>ria dizer (e a teologia até vem aqui mais<br />
<strong>do</strong> que a propósito...), on<strong>de</strong> o peca<strong>do</strong> abunda, a graça sobreabunda:<br />
Tu<strong>do</strong> isto é obsoleto e triste. Ainda te lembrarás <strong>de</strong> mim? Às vezes nem<br />
eu me lembro <strong>de</strong> mim próprio. Olho-me ao espelho e é um estranho<br />
que vejo. Surpreen<strong>de</strong>-me o meu próprio silêncio, e a minha voz. Falo<br />
pouco, e tu<strong>do</strong> o que digo é num tom seco e melancólico, que não era o<br />
meu. e tenho sempre uma ruga na testa e uma <strong>do</strong>bra amarga na boca.<br />
As tuas cartas chegam cheias <strong>de</strong> amor. Leio-as como quem reza. esperemos<br />
que tu<strong>do</strong> isto passe. eu gosto tu<strong>do</strong> <strong>de</strong> ti. Beijinhos para a morena<br />
minha filha, que logo, por mal <strong>de</strong>la, foi herdar o que tenho <strong>de</strong> mais<br />
horren<strong>do</strong>. Muitas sauda<strong>de</strong>s e beijos. Sê feliz, sim? (CG: 221).<br />
«Sê feliz» é aqui o sagra<strong>do</strong> e a dádiva <strong>do</strong> amor, o que apesar <strong>de</strong><br />
tu<strong>do</strong> prevalece. Porque às vezes as cartas <strong>de</strong> ALA também são felizes,