o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
304 diAcríticA<br />
ponto que, na poética bau<strong>de</strong>lairiana, se vai cavan<strong>do</strong> mais fun<strong>do</strong> o fosso que separa<br />
a alegoria da ironia, a distância entre uma engrenagem binária <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> que se<br />
oferece por meio <strong>de</strong> um sistema <strong>de</strong> reenvios entre <strong>do</strong>is universos (e <strong>do</strong>is tempos) e<br />
que mantém no horizonte a sua equivalência mútua, e a <strong>de</strong>sapropriação específica<br />
da ironia enquanto força que atinge a sua plenitu<strong>de</strong> estética na negação da sua<br />
substância, na força que a impele para a auto-transcendência, algo que Bau<strong>de</strong>laire<br />
associou, também, ao sobrenaturalismo.<br />
Judith Spencer situa a obra <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire num contexto estético romântico<br />
marca<strong>do</strong> pela ironia da parabasis, que institui o autocancelamento circular como<br />
condição essencial da produção <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>. Por isso, insiste no carácter essencialmente<br />
irónico da imagem poética em Bau<strong>de</strong>laire, na força <strong>de</strong> anulação e <strong>de</strong><br />
dispersão da própria imagem, que, ao recorrer a um sistema mo<strong>de</strong>lizante secundário,<br />
evoca as imagens sem nunca as realizar:<br />
The para<strong>do</strong>x of the poetic function points to the essential problematics of<br />
language as antinomy, for language as medium must disappear, must <strong>de</strong>materialize<br />
itself in or<strong>de</strong>r to realize its function: the word as means vanishes once the<br />
evocation of the concept has been accomplished (I, 253).<br />
É na medida em que oferece um espelho paródico, <strong>de</strong> autocontestação, on<strong>de</strong><br />
se reflecte a alterida<strong>de</strong> essencial da linguagem poética, que a ironia romântica<br />
po<strong>de</strong> ser vista como um contributo essencial para a construção da teoria mo<strong>de</strong>rna<br />
da linguagem: é, pois, numa percepção diacrónica da teoria mo<strong>de</strong>rna da linguagem<br />
e com referência à ironia romântica que se po<strong>de</strong>rá ter uma justa visão <strong>do</strong>s avanços<br />
no campo da poética mo<strong>de</strong>rna e pós-mo<strong>de</strong>rna. Mas isto, é preciso notá-lo, fica a<br />
<strong>de</strong>ver-se à natureza <strong>do</strong> espelho que se ergue e às características específicas <strong>de</strong><br />
to<strong>do</strong> o processo <strong>de</strong> especularização, que permitirão que ele funcione numa linha<br />
diacrónica ao mesmo tempo que actua auto-reflexivamente. O para<strong>do</strong>xo da ironia<br />
romântica é ela ser essencialmente parabásica na sua circularida<strong>de</strong> autofágica, é o<br />
senti<strong>do</strong> ser <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> e constituí<strong>do</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a origem pela sua própria anulação.<br />
Numa linha <strong>de</strong> raciocínio que em diversos aspectos segue a par <strong>do</strong> estu<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong> Jean Starobinski, Portrait <strong>de</strong> l’artiste en saltimbanque, Spencer consi<strong>de</strong>ra que é<br />
na figura <strong>do</strong> bufão que se con<strong>de</strong>nsa esta concepção da origem poética, actuan<strong>do</strong><br />
aquele como o arquétipo <strong>do</strong> louco sacrificial e adquirin<strong>do</strong> um valor <strong>de</strong> figura exemplar<br />
na obra <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire através <strong>do</strong> cruzamento entre a temática da bufonaria,<br />
em que estão implícitos largos traços que adquiriu ao longo da história da arte e<br />
da literatura, e a simbologia <strong>do</strong> saltimbanco, relação essa que irá consolidar-se na<br />
obra <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire como uma poética <strong>do</strong> bufão. enquanto símbolo da alienação<br />
social e metafísica <strong>do</strong> artista, patente num contexto significativamente mais vasto<br />
da produção literária ao longo <strong>do</strong> século XIX em França e acentuadamente nas<br />
suas últimas décadas, o bufão alia a sua vertente cómica à dimensão cósmica,<br />
como <strong>de</strong>monstram as análises <strong>de</strong> Spencer.<br />
Nos <strong>do</strong>is primeiros capítulos, esta vertente é explorada, primeiro através <strong>de</strong><br />
uma revisão histórico-social da construção <strong>do</strong> símbolo <strong>do</strong> bufão e das suas manifestações<br />
artísticas, com especial atenção às condições em que se <strong>de</strong>senvolveu<br />
a imaginação satírica na época e o mo<strong>do</strong> como esta pô<strong>de</strong> influir no imaginário