o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
80 diAcríticA<br />
reutilização da mesma imagem em <strong>do</strong>is livros distintos reforça a i<strong>de</strong>ia<br />
<strong>de</strong> que a poesia toda não se encontra na soma das partes, mas na capacida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> se encontrar a imagem da totalida<strong>de</strong> em cada elemento.<br />
A capa é uma pertinente contribuição para a compreensão da poesia<br />
<strong>de</strong> <strong>Herberto</strong> Hel<strong>de</strong>r e neste caso representa uma imagem que sintetiza<br />
muitas das forças mais significativas da obra <strong>do</strong> poeta (cf. nota 1.).<br />
O fun<strong>do</strong> escuro da obra <strong>de</strong> Ilda David realça o tom <strong>de</strong> fogo com que<br />
são esboça<strong>do</strong>s os elementos que sobressaem na tela. Do perfil da face<br />
<strong>de</strong> um homem brota uma chama que se expan<strong>de</strong> e se eleva, por <strong>do</strong>is<br />
terços da capa, em forma <strong>de</strong> livro vaporoso, suporta<strong>do</strong> e conforma<strong>do</strong><br />
por uma mão estilizada. O fogo é o livro, em fogo está a mão e a boca<br />
que liberta a palavra. A faca «não me corta o sangue escrito», porque<br />
a faca e o sangue escrito pertencem a dimensões sem contacto, e se<br />
o poeta trabalha quanto po<strong>de</strong> «pela sua violência» (549) talvez tenha<br />
consegui<strong>do</strong> criar «uma língua <strong>de</strong>ntro da própria língua» (572).<br />
A evi<strong>de</strong>nte disposição <strong>de</strong> <strong>Herberto</strong> Hel<strong>de</strong>r em combinar elementos<br />
biográficos com elementos poéticos vem reforçar a relação entre autor<br />
empírico e autor textual. esta perspectiva torna-se ainda mais interessante,<br />
quan<strong>do</strong> seria expectável para um leitor habitual da poesia <strong>de</strong>ste<br />
poeta não só não encontrar essa presença como <strong>de</strong>parar, em muitos<br />
momentos da obra, com um autor textual <strong>de</strong> grau zero. 11 Noutros<br />
momentos, chegámos a referir a existência <strong>de</strong> um certa <strong>de</strong>spersonalização<br />
na sua obra (cf. Silva, 2004: 52-53, 368), pela forma como o<br />
autor textual se esbatia e se universalizavam as imagens e assumiam<br />
a incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ficar limitadas a um sentimento, a uma vivência, a<br />
um eu individualiza<strong>do</strong>.<br />
A ida<strong>de</strong> <strong>do</strong> poeta (o poeta nasceu em 1930 e em 2007 tem 77 anos)<br />
e o mo<strong>do</strong> como a ida<strong>de</strong> traz implicações directas para a construção <strong>de</strong><br />
relações e vivências poéticas aliadas a uma postura <strong>de</strong> ruptura crítica<br />
em relação a certos ambientes culturais contemporâneos, «quan<strong>do</strong><br />
vem nos jornais: / política, artes & letras, coacções, corrupções, e a<br />
violência <strong>do</strong> dinheiro estúpi<strong>do</strong>» (590), são inegáveis contributos que<br />
se encontram plasma<strong>do</strong>s ao longo <strong>do</strong>s seus poemas <strong>de</strong> A faca não corta<br />
o fogo. Outros elementos po<strong>de</strong>m, no entanto, ser questiona<strong>do</strong>s pela<br />
11 O autor textual «é o emissor que assume imediata e especificamente a responsabilida<strong>de</strong><br />
da enunciação <strong>de</strong> um da<strong>do</strong> texto literário e que se manifesta sob a forma e a<br />
função <strong>de</strong> um eu oculta ou explicitamente presente e actuante no enuncia<strong>do</strong>, isto é, no<br />
próprio texto literário.» O autor textual po<strong>de</strong> estar «como que ausente ou oculto, como<br />
se fosse um eu <strong>de</strong> ‘grau zero’» (Aguiar e Silva, 1988: 228).