o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
<strong>Herberto</strong> Hel<strong>de</strong>r: o PoemA contínuo nA PrimeirA décAdA <strong>de</strong> 2.º milénio<br />
143<br />
escolha; as duas línguas […] constituem, <strong>de</strong>ssa forma, uma reserva<br />
que lhe permite a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> escolha segun<strong>do</strong> a verda<strong>de</strong> <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo».<br />
(Barthes 1979, 24-25; itálicos <strong>do</strong> texto).<br />
Séculos mais tar<strong>de</strong>, na fronteira da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> estética, no<br />
clarão <strong>de</strong> uma afinal equívoca coincidência entre essa mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong><br />
e a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> política, Rimbaud anotava na carta a Paul Demeny<br />
<strong>de</strong> 15 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1871: trouver une langue.<br />
De então para cá a questão da língua a escolher po<strong>de</strong> pôr-se <strong>de</strong><br />
forma historicamente <strong>de</strong>terminada em <strong>de</strong>terminadas periferias. Mas<br />
enquanto alegoria da (im)possibilida<strong>de</strong> da poesia ela põe-se para<br />
alguns <strong>do</strong>s maiores, como <strong>Herberto</strong> Hel<strong>de</strong>r, como a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
não se consentir como <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre já feito pela língua.<br />
O poema encontra, sem a procurar, essa língua; mas não se limita<br />
a recebê-la; erra-a, <strong>de</strong>sfigura-a e amplia-lhe os jeitos, enxerta-lhe novos<br />
possíveis discursivos; reinventa-a: reforja o léxico e as relações vocabulares;<br />
perturba as formas e os ritmos sintácticos; produz imagens<br />
e figuras no regime alucinatório das iluminações e das radiações, que<br />
ferem a língua e rasgam a boca e os céus <strong>de</strong>masia<strong>do</strong> serenos da significação<br />
pré-<strong>de</strong>finida. Só assim o poeta «com perícia artífice <strong>de</strong>ixa no<br />
papel / o nexo estilístico entre / o terso, vívi<strong>do</strong>, caótico e <strong>do</strong>ce: / e o<br />
escrito, o carbonífero, o extinto, / o corpo» (608).<br />
Assim, o poema está e não está conti<strong>do</strong> ou previsto na língua,<br />
não constitui um <strong>de</strong>svio. «À língua autora / rouca e múrmura» (581-2),<br />
o poema acrescenta-lhe «a minha língua na tua língua em to<strong>do</strong>s os<br />
senti<strong>do</strong>s sagra<strong>do</strong>s / e profanos, / saliva, muita, e temperatura animal //»<br />
(589); acrescenta-lhe a boca, os <strong>de</strong>ntes, os <strong>de</strong><strong>do</strong>s e as unhas, a saliva e<br />
o sangue, as «capitais <strong>do</strong> corpo» e a esferográfica, a «bic» que trabalha<br />
os <strong>de</strong><strong>do</strong>s, «a bic cristal preta» (563, 580, 606, 607) – «mesmo sem<br />
gente nenhuma que te ouça, / poema intrínseco a português e <strong>de</strong>ntes /<br />
a sangue <strong>de</strong>smancha<strong>do</strong>» (577)<br />
Poeta obscuro, poeta hermético, se costuma dizer, e aqui, na construção<br />
da tradição <strong>de</strong> que ele próprio é o quase único representante,<br />
ele como que <strong>do</strong>bra uma sobre a outra a citação <strong>do</strong> «trobar clus» provençal<br />
– «ar resplan la flors enversa / ar resplan e então resplen<strong>de</strong> a<br />
flor inversa» (555) – e a citação <strong>do</strong> «styx» (555) <strong>de</strong> Mallarmé, e obtém<br />
a «rosa irrefutável» (556).<br />
<strong>Herberto</strong> Hel<strong>de</strong>r é <strong>de</strong>cididamente um nosso «extremo contemporâneo,<br />
se com esta fórmula se pu<strong>de</strong>r dizer que na teia ou na re<strong>de</strong> da<br />
nossa contemporaneida<strong>de</strong>, ele é um <strong>do</strong>s «lugares» mais excêntrico e<br />
remoto. Ou dizen<strong>do</strong>-o <strong>de</strong> outro mo<strong>do</strong>: ele é e não é nosso contempo-