o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
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A «AntroPófAgA festA» 13<br />
da loucura. Alimentava-me disso apenas, <strong>de</strong> loucura. Nada mais»<br />
(i<strong>de</strong>m, 183).<br />
Além da experiência, a educação <strong>do</strong> poeta junto <strong>do</strong>s seus antecessores<br />
também assume <strong>conto</strong>rnos <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>voração <strong>de</strong>sprevenida:<br />
A juventu<strong>de</strong> alimenta-se <strong>do</strong> que as garras apanham, e os antigos <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m-se<br />
das gerações insaciáveis, atiran<strong>do</strong> carne podre. Mas é carne<br />
on<strong>de</strong> se insinuam ainda o gosto <strong>do</strong> sangue, e um tigre juvenil não<br />
<strong>de</strong>corou tão bem a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> que se não confunda <strong>de</strong>sprevenidamente<br />
com uma jovem hiena» (Hel<strong>de</strong>r, 2006a: 10).<br />
embora o alimento se possa revelar apenas «carne podre», este<br />
estádio da formação <strong>do</strong> poeta tem alguma utilida<strong>de</strong>, uma vez que a<br />
leitura prepara a escrita. O poeta inicia<strong>do</strong> através da obra <strong>de</strong> outros,<br />
«antigos ou mo<strong>de</strong>rnos», acredita-se um salva<strong>do</strong>r sem reconhecer<br />
ainda que é apenas «uma nova imitação <strong>de</strong> Cristo na luciferina versão<br />
<strong>de</strong> alguns radicais, antigos ou mo<strong>de</strong>rnos, para quem a poesia foi<br />
uma acção terrorista, uma técnica <strong>de</strong> operar pelo me<strong>do</strong> e o sangue»<br />
(i<strong>de</strong>m, 11). A ignorância pessoal <strong>do</strong> poeta é assumida no limite e a<br />
se<strong>de</strong> <strong>de</strong> conhecimento revela-se um «tormento sempre equivoca<strong>do</strong>»<br />
(ibi<strong>de</strong>m). Não é a poesia um conhecimento, apenas um jogo <strong>de</strong> «espelhos»<br />
em que o poeta não vê mais <strong>do</strong> que o seu próprio rosto fatalmente<br />
captura<strong>do</strong> no poema:<br />
2.<br />
Não sou vítima <strong>de</strong> nada; não sou vítima da ilusão <strong>do</strong> conhecimento.<br />
escrever é literalmente um jogo <strong>de</strong> espelhos, e no meio <strong>de</strong>sse jogo<br />
representa-se a cena multiplicada <strong>de</strong> uma carnificina metafisicamente<br />
irrisória. As caçadas celestes, o esotérico pentagrama corporal,<br />
a antropofagia mágica, imprimiram-se no filme <strong>do</strong>cemente truculento<br />
<strong>do</strong> cinema geral <strong>do</strong> bairro con<strong>de</strong>na<strong>do</strong> à fruição analfabeta (i<strong>de</strong>m, 12).<br />
o poema antropofágico<br />
O espectáculo truculento da poesia acciona a ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> <strong>de</strong>vorações<br />
implícitas na i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> antropofagia. Num primeiro nível, ocorre<br />
a <strong>de</strong>voração <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> pelo sujeito; num segun<strong>do</strong>, o poeta escrevente<br />
é <strong>de</strong>vora<strong>do</strong> pelo texto, passan<strong>do</strong> a existir apenas naquele «corpo<br />
literal» (i<strong>de</strong>m, 38). em 1968, Barthes substituía a noção <strong>de</strong> autor pela<br />
<strong>de</strong> scriptor, dizen<strong>do</strong> que «a voz per<strong>de</strong> a sua origem, o autor entra na<br />
sua própria morte, a escrita começa» (Barthes, 1987: 49). em <strong>Herberto</strong>