o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
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A «AntroPófAgA festA» 19<br />
coração colérico, esqueci<strong>do</strong>, humil<strong>de</strong>. Um estilo alarmante, muito para<br />
nos não <strong>de</strong>ixar <strong>do</strong>rmir senão <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> completamente cumpri<strong>do</strong>. e que<br />
então não <strong>de</strong>ixasse <strong>do</strong>rmir o mun<strong>do</strong>. (i<strong>de</strong>m, 75)<br />
Os textos <strong>de</strong> Antropofagias convidam o sub-grupo <strong>de</strong> leitores especializa<strong>do</strong>s,<br />
senta<strong>do</strong>s na «mesa antropófaga» e senhores <strong>de</strong> uma «vil<br />
ciência», a aban<strong>do</strong>nar a «distracção» (i<strong>de</strong>m, 105) ou a falta <strong>de</strong> «escrúpulos»<br />
(i<strong>de</strong>m, 35), pois «os poemas hão-<strong>de</strong> permanecer fecha<strong>do</strong>s após<br />
todas as <strong>de</strong>socultações e hão-<strong>de</strong> ser abertos para quem neles entre<br />
como numa casa oferecida» (Hel<strong>de</strong>r, 1999: 90). O leitor <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong><br />
ser egótico e preparar-se para ser leva<strong>do</strong> por <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> poema, e não<br />
para o ver <strong>de</strong> fora, petiscan<strong>do</strong>, diríamos, aqui e ali o que melhor convier.<br />
Precisa <strong>de</strong> entrar no texto, sem ter nada «nas algibeiras biográficas,<br />
semióticas, psicanalíticas, i<strong>de</strong>ológicas, simbológicas» (ibi<strong>de</strong>m),<br />
não po<strong>de</strong> ser um <strong>do</strong>s «acrobatas teóricos» (ibi<strong>de</strong>m). Tem <strong>de</strong> vir «<strong>de</strong><br />
longe», <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> <strong>de</strong> «um talento virgem, a virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> manejar perguntas<br />
que em si mesmas [achem] respostas» (ibi<strong>de</strong>m). esta voracida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
que o autor fala não é semelhante a um «piquenique» (Hel<strong>de</strong>r, 2006a:<br />
60), mas a uma morte <strong>do</strong> próprio leitor para que possa receber o<br />
universo <strong>do</strong> texto. Há que não ser «distraí<strong>do</strong>», há que aban<strong>do</strong>nar-se<br />
ao poema, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong>-se levar por <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>le e colhen<strong>do</strong>, então, no seu<br />
centro, a «magia» da «i<strong>de</strong>ntificação» <strong>do</strong> «corpo com a matéria e as<br />
formas» (Hel<strong>de</strong>r, 1990: 3). No «Texto 5» cria-se a alegoria <strong>de</strong> um «um<br />
homem que aban<strong>do</strong>nasse a família / apenas para ser um obscurantíssimo<br />
“pintor <strong>de</strong> cavalos”» (Hel<strong>de</strong>r, 2009: 282). Seria um retorna<strong>do</strong> à<br />
linguagem mítica da natureza, um exila<strong>do</strong>, um esqueci<strong>do</strong> <strong>de</strong> si, entregue<br />
ao momento e à revelação poética. esse pintor seria um poeta ou<br />
um leitor ou um crítico com espírito <strong>de</strong> poeta. eis a «cumplicida<strong>de</strong>»<br />
(Hel<strong>de</strong>r, 2006a: 146) <strong>de</strong>sejada.<br />
Mesmo que ao longo da obra <strong>de</strong> <strong>Herberto</strong> Hel<strong>de</strong>r os críticos<br />
sejam conota<strong>do</strong>s <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> negativo, não é possível compreendê-la sem<br />
ter como referência esse mesmo universo <strong>de</strong> personalida<strong>de</strong>s com que<br />
ela vai dialogan<strong>do</strong>. A contemporaneida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Herberto</strong> Hel<strong>de</strong>r tem algo<br />
a apren<strong>de</strong>r com o poeta sobre a sua linguagem. Os possíveis interlocutores<br />
<strong>de</strong> Antropofagias não serão só os críticos mas também os<br />
poetas a quem a poesia ocupa como tema <strong>de</strong> reflexão. Cometem equívocos<br />
que o autor, pacientemente, corrige enquanto os conduz, como<br />
que por <strong>de</strong>ntro da sua casa, como se lhes ensinasse o correcto mo<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />
exercer a antropofagia a que se chama leitura <strong>de</strong> poesia.<br />
Ao serviço <strong>de</strong>ssa intenção pedagógica, a utilização <strong>de</strong> aspas nestes<br />
<strong>do</strong>ze textos é um recurso particularmente significativo. Se por um la<strong>do</strong>