o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
20 diAcríticA<br />
assinalam o discurso directo, <strong>de</strong>sses supostos interlocutores, por outro,<br />
assinalam uma citação. Há momentos em que o autor cita conceitos<br />
que pertencem à língua corrente e os submete à sua própria intenção<br />
expressiva. Cita os lugares-comuns, ao mesmo tempo que assinala a sua<br />
insuficiência. Só po<strong>de</strong>rão ser usa<strong>do</strong>s se não houver outros melhores,<br />
por isso <strong>de</strong>vem ser nota<strong>do</strong>s entre-aspas (por honestida<strong>de</strong> intelectual,<br />
talvez). O uso <strong>de</strong>ste sinal gráfico indica, assim, a <strong>de</strong>sa<strong>de</strong>quação <strong>do</strong> referente<br />
à referência, a impotência <strong>do</strong> locutor <strong>de</strong> encontrar o termo justo,<br />
a «palavra vingativa e pura» (Hel<strong>de</strong>r, 2009: 31). As aspas apontam<br />
também para a natureza escrita <strong>do</strong> discurso e, por isso, artificial. Além<br />
disso, constituem um <strong>do</strong>s recursos próprios da crítica, que se serve das<br />
palavras <strong>de</strong> um autor para <strong>de</strong>pois as comentar. O trabalho <strong>do</strong> crítico<br />
vive <strong>de</strong>sse minucioso <strong>de</strong>smembramento textual. quer o uso das aspas<br />
indique discurso directo quer aponte o lugar-comum, a insuficiência<br />
linguística ou a notação crítica, consiste num mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> apropriação da<br />
palavra <strong>de</strong> outrem e, nessa medida, po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rada um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />
antropofagia, assinala<strong>do</strong> na própria redacção <strong>do</strong> texto. Ao servir-se das<br />
aspas, o autor <strong>do</strong>s <strong>do</strong>ze textos <strong>de</strong> 71 transforma-se em crítico, reivindican<strong>do</strong><br />
para si o direito à citação e <strong>de</strong>sencontran<strong>do</strong> «noções e senti<strong>do</strong>s»<br />
(Hel<strong>de</strong>r, 2006a: 127), <strong>de</strong>stabilizan<strong>do</strong> as certezas <strong>de</strong> uma vasta comu-<br />
nida<strong>de</strong> educada numa antiquíssima tradição que associa a leitura à<br />
ciência. Reeduca os leitores críticos; elabora uma ars legendi a<strong>de</strong>quada<br />
à sua obra. Avisa-os: «A ignorância é muito mais brilhante que a ciência.<br />
Sabe muitíssimo mais» (Hel<strong>de</strong>r, 1999: 90). A frase é uma ameaça<br />
para qualquer crítico, mas é também uma mão oferecida que o convida<br />
à obscura dança antropofágica.<br />
<strong>Herberto</strong> Hel<strong>de</strong>r também pertence <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iramente à comunida<strong>de</strong><br />
<strong>do</strong>s leitores antropófagos e volta a experimentar com eles o «pasmo»<br />
(Hel<strong>de</strong>r, 2009: 292) que a sua poesia provoca. A cada exercício meta-<br />
poético tenta treinar «o me<strong>do</strong> como uma foca» (i<strong>de</strong>m, 293). Olha assim<br />
o seu rosto no espelho e assume-se como antropófago, «um minotauro»<br />
entregue a um «festim antropo-auto-fágico» (Hel<strong>de</strong>r, 2006a:<br />
149). Pratica a «ciência selvagem <strong>de</strong> investigar a força / por <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong>s<br />
olhos», abisman<strong>do</strong>-se diante <strong>de</strong> uma dança inflamada que se ergue<br />
perante um olhar magnificamente alimenta<strong>do</strong>. entrega-se à «antro-<br />
pófaga festa / <strong>de</strong> «estar sobre si»» (Hel<strong>de</strong>r, 2009: 292). O sujeito que<br />
se observa é uma «figura <strong>de</strong> leitura» (Pimentel, 2007: 36), uma personagem<br />
saída <strong>do</strong> texto, como se indica no «Texto 10»:<br />
agarra-se a esse <strong>de</strong>stino a «personagem» saída<br />
<strong>do</strong> «trabalho das palavras» <strong>do</strong>bra-se sobre esse me<strong>do</strong>