o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
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A rePresentAção literÁriA <strong>de</strong> umA noVA i<strong>de</strong>ntidA<strong>de</strong> culturAl<br />
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mun<strong>do</strong>s oci<strong>de</strong>ntal e africano. Todavia, o mesmo é, por outro la<strong>do</strong>,<br />
prenuncia<strong>do</strong>r <strong>do</strong> advento <strong>de</strong> uma nova mentalida<strong>de</strong>: o critica<strong>do</strong> po<strong>de</strong><br />
tornar-se sujeito da crítica e lutar pelos seus i<strong>de</strong>ais. É o que acontece<br />
no final <strong>do</strong> romance, quan<strong>do</strong> o protagonista se vai entregar ao comandante<br />
<strong>de</strong> círculo 5 , <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> que é possível vencer a injustiça <strong>do</strong><br />
coloniza<strong>do</strong>r pela força das i<strong>de</strong>ias: «Vous m’aviez injustement attaqué<br />
(...) je me suis défendu comme un intellectuel» (p. 158).<br />
Portanto, se é certo que o livro é her<strong>de</strong>iro <strong>do</strong> afro-pessimismo<br />
<strong>do</strong>s anos 80, também se afigura como verda<strong>de</strong>iro que o facto <strong>de</strong> o<br />
coloniza<strong>do</strong> ousar <strong>de</strong>sconstruir os estereótipos da hegemónica i<strong>de</strong>ologia<br />
oci<strong>de</strong>ntal, lhe confere uma certa legitimida<strong>de</strong> militante. Assim,<br />
afirman<strong>do</strong>-se <strong>de</strong>tentor <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> cultural que sobreviveu aos<br />
ventos da <strong>de</strong>struição colonial, orgulhan<strong>do</strong>-se das tradições ancestrais<br />
e mesmo da sua língua nativa, o escritor incita, <strong>de</strong> certo mo<strong>do</strong>, os seus<br />
conterrâneos à luta pela liberda<strong>de</strong>, igualda<strong>de</strong> e justiça em tempos <strong>de</strong><br />
crise.<br />
2. a nova visão da velha História<br />
em la carte d’i<strong>de</strong>ntité, a visão endógena (<strong>do</strong> coloniza<strong>do</strong>) sobre o<br />
sistema colonial surge em permanente confronto com a exógena (<strong>do</strong><br />
coloniza<strong>do</strong>r), representa<strong>do</strong>s na diegese respectivamente pelo protagonista<br />
(Mélé<strong>do</strong>uman) e pelo comandante <strong>de</strong> círculo (Kakatika). O código<br />
i<strong>de</strong>ológico constitui-se, então, a partir das mundivisões antinómicas<br />
<strong>de</strong> ambos. O europeu, representan<strong>do</strong> a velha i<strong>de</strong>ologia, <strong>de</strong>svenda-nos<br />
uma conjuntura histórica plena <strong>de</strong> preconceitos on<strong>de</strong> o negro é visto<br />
como um ser inferior, bárbaro, selvagem, inculto, sem história nem<br />
direitos, enquanto o branco é visto como o símbolo da perfeição e da<br />
virtu<strong>de</strong>:<br />
Pour Kakatika les Noirs sont <strong>de</strong>s sauvages, <strong>de</strong>s primitifs sans histoire,<br />
sans culture, sans civilisation. De grands enfants paresseux, fainéants,<br />
stupi<strong>de</strong>s: aucune qualité morale ni intellectuelle. Autant le Blanc est la<br />
perfection <strong>de</strong> la vertu, l’essence secrète qui dévoile toute chose, autant<br />
le Noir est la perfection du vice (p. 21).<br />
5 Na África Oci<strong>de</strong>ntal Francesa (A. O. F.), o comandante <strong>de</strong> círculo, chefe máximo<br />
da colónia, tem o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão e <strong>de</strong> execução <strong>de</strong> to<strong>do</strong> o tipo <strong>de</strong> tarefas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a<br />
gestão financeira ao policiamento, é inspector da educação, juiz, mestre-<strong>de</strong>-obras, etc.<br />
(cf. Joseph Ki-Zerbo: 1999, vol. II, pp. 113-114).