15.04.2013 Views

o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho

o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho

o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

316 diAcríticA<br />

e horror ante o incrível / <strong>de</strong> Alguém que é po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser, / e, a querer voltar<br />

a ser, se dana, absorto. //» (v. 9-11); e o <strong>de</strong>sembocar numa condição insustentável<br />

mas possível, afinal, que é a da vida sem vida – uma existência mental, digamos,<br />

<strong>de</strong> zoombie: «Sabei que hoje é possível o impossível / <strong>de</strong> Alguém ser con<strong>de</strong>na<strong>do</strong>,<br />

até morrer, / in<strong>de</strong>finidamente, a viver morto. //» (vv. 12-14). Sublinhe-se que este<br />

morto-vivo (esta<strong>do</strong> mental <strong>de</strong>pressivo, pessimismo absoluto), este viver nas trevas,<br />

conecta-se, como suce<strong>de</strong> no poema «Imagem», com a <strong>de</strong>mência: «Nem sequer<br />

tentes, Homem, perscrutar / qual seja o precipício da loucura. / Compara-o ao<br />

terrível acordar / dum vivo que foi da<strong>do</strong> à sepultura. //» 3 .<br />

O para<strong>do</strong>xo total da existência parece atingir-se no poema seguinte («Anel»,<br />

p. 307), mais precisamente no 1.º verso da 2.ª estrofe: «Desejo, sem <strong>de</strong>sejo, o meu<br />

<strong>de</strong>sejo». Se <strong>de</strong>sejar o seu próprio <strong>de</strong>sejo é já em si a duplicação <strong>de</strong> um inatingível<br />

(duplicação <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo, mas sobretu<strong>do</strong> da frustração inerente ao <strong>de</strong>sejar), <strong>de</strong>sejar<br />

sem <strong>de</strong>sejo encerra uma contradição dificilmente entendível. O verso imediatamente<br />

a seguir fornece uma concretização: «Sem <strong>de</strong>sejar, <strong>de</strong>sejo a <strong>de</strong>spedida».<br />

e assoma assim outra obsessão <strong>do</strong> imaginário lírico <strong>de</strong> caixa <strong>de</strong> música: o clássico<br />

entendimento da morte como libertação. O texto acaba novamente a insistir no<br />

insuportável esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> para<strong>do</strong>xo emocional que escraviza o sujeito. Do ponto <strong>de</strong><br />

vista retórico, o para<strong>do</strong>xo expressa-se por um hábil quiasmo: «Morro <strong>de</strong>sta paixão,<br />

enquanto vivo, / e <strong>de</strong>sta paixão vivo, enquanto morro.» (vv. 13-14).<br />

O viver em esta<strong>do</strong> intragável repete-se obsessivamente nos sucessivos poemas<br />

<strong>de</strong> caixa <strong>de</strong> música. Dir-se-ia que o livro é to<strong>do</strong> ele constituí<strong>do</strong> por um longo e<br />

ca<strong>de</strong>ncia<strong>do</strong> planger radical. em «Inumanida<strong>de</strong>» (p. 308), o para<strong>do</strong>xo mental que<br />

tortura é causa <strong>de</strong> <strong>de</strong>sintegração. O aniquilar fica à vista com a irrupção, por <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bramento,<br />

<strong>de</strong> uma figura estranha e <strong>de</strong>sesperada por se reencontrar («Olho-me ao<br />

espelho e não me vejo eu. / quero-me em toda a parte e em nenhuma. / Chamo por<br />

mim e estranho a minha voz. //», vv. 9-11), sen<strong>do</strong> o resulta<strong>do</strong> <strong>de</strong>sta <strong>de</strong>spersonali-<br />

zação uma implacável solidão: «Somente é só quem da alma se per<strong>de</strong>u / e nem<br />

à própria sombra já se arruma.» (vv. 12-13); em «Assinatura» (p. 309), o sujeito<br />

<strong>de</strong>fine-se como uma mistura improvável entre insensibilida<strong>de</strong> e sensibilida<strong>de</strong><br />

(entre, para usar palavras <strong>do</strong> poeta, «murraça» e «beijo», entre «águia» e «colibri»);<br />

em «Cartel» (p. 310), como se sofresse uma incorporação maléfica, sataniza-se<br />

(«Sou, à força, o diabo. Não sou eu.», v. 1) e insurge-se contra o inexorável <strong>de</strong>stino<br />

<strong>de</strong> que é vítima (em «esconjuro», luta, aliás, contra o <strong>de</strong>mónio, tenta exorcizar-se<br />

<strong>do</strong> maléfico); em «Sinal Contrario» (p. 332), volta a clamar o azar tremen<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />

ter nasci<strong>do</strong> sob o signo da <strong>de</strong>sgraça; em «Ban<strong>de</strong>ira» (p. 331), temos a negridão <strong>do</strong><br />

mun<strong>do</strong> a arrepiar a sua hipersensibilida<strong>de</strong>; em «Teimosia» (p. 311), queixa-se da<br />

inutilida<strong>de</strong> gritante <strong>do</strong> ofício da poesia, ao qual não consegue porém <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> se<br />

entregar; em «Guião» (p. 315), exprime com ímpeto a trágica mágoa <strong>de</strong> um diabólico<br />

sofrimento sem fim, horroriza a vida, restan<strong>do</strong>-lhe, todavia, a certeza reconfortante<br />

<strong>de</strong> vir a ser justiça<strong>do</strong> por Deus; em «Fogo!» (p. 336), <strong>de</strong>nuncia, com visceral<br />

3 eis outra alusão explícita à loucura e aos sintomas que assume (os <strong>de</strong> uma carregada<br />

hipersensibilida<strong>de</strong> absolutamente insuportável): «Crava-me os nervos o barulho.<br />

É um prego. / A luz corta-me os olhos. É uma faca. / Ah! O meu <strong>de</strong>spertar <strong>de</strong> morto e<br />

cego! / esta <strong>de</strong>mência a con<strong>de</strong>nar-me: – “Raça!”» («Impossibilida<strong>de</strong>», vv. 1-4, p. 319).

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!