o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
284 diAcríticA<br />
O problema que se formula tem a ver com saber <strong>de</strong> que mo<strong>do</strong><br />
Baltazar infere o temperamento angelical e inocente <strong>de</strong> Mécia, visto<br />
que, até ao final <strong>de</strong>sse primeiro capítulo, a fidalga praticamente nada<br />
disse que lhe revelasse ou supusesse o génio. Recordan<strong>do</strong> uma passagem<br />
atrás já assinalada, limitou-se a manifestar que tinha me<strong>do</strong>,<br />
naquele instante <strong>de</strong> significativa <strong>de</strong>ferência, no qual Baltazar, muito<br />
<strong>de</strong>lica<strong>do</strong> e muito avesso ao machismo ostensivo <strong>de</strong> D. José, a convida<br />
para se sentar no arção. Nenhuma palavra mais. Por conseguinte,<br />
Baltazar construiu uma significação <strong>de</strong> Mécia baseada nos silêncios da<br />
mesma, anteven<strong>do</strong>-a em termos <strong>de</strong> mulher-anjo, sen<strong>do</strong> que o recato<br />
da moça parece jogar em prol da interpretação. Significa isto que<br />
o silêncio <strong>de</strong> Mécia cumpre uma função comunicativa: a que leva<br />
Baltazar a crer que se acha diante <strong>de</strong> uma ín<strong>do</strong>le angélica e inocente,<br />
bem ao gosto das suas expectativas românticas. Por essa razão, vale<br />
dizer que se trata <strong>de</strong> uma comunicação <strong>de</strong> tipo não-verbal a que<br />
fomenta a interpretação <strong>do</strong> mancebo <strong>de</strong> Olarias; e que, na categoria<br />
da comunicação não-verbal, estamos diante <strong>de</strong> um tipo <strong>de</strong> comunicação<br />
dinâmica, uma vez que assenta na postura <strong>de</strong> Mécia (opta por<br />
se resguardar verbalmente, ruboriza perante o que diz D. José) e não<br />
<strong>de</strong>corre <strong>de</strong> aspectos estáticos da personagem (configuração física,<br />
maquilhagem, pentea<strong>do</strong>, vestuário). e o que porventura acautelaria<br />
uma tal leitura está veda<strong>do</strong> a Baltazar, pois não <strong>de</strong>vemos olvidar que a<br />
personagem não ace<strong>de</strong> ao conjunto da informação sobre Mécia que<br />
o leitor, por via <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r intrometi<strong>do</strong>, tem à sua disposição.<br />
Outro exemplo, assaz pertinente, encontra-se no final <strong>do</strong> capí-<br />
tulo IV. Advirta-se que, neste caso, a palavra <strong>de</strong>sempenha um papel<br />
fundamental, na medida em que o silêncio <strong>de</strong> Mécia só ganha senti<strong>do</strong><br />
a partir das palavras que Lopo <strong>de</strong> Sampaio profere. e que diz o senhor<br />
<strong>de</strong> Ansiães? Dirige-se ao fidalgo <strong>de</strong> Olarias nestes termos: «A sua companhia<br />
é alívio e duplica<strong>do</strong> direito à nossa gratidão. Mécia me disse há<br />
instantes que V. S.ª era a criatura mais agradável e <strong>de</strong>licada que ela tinha<br />
visto» (i<strong>de</strong>m, 45-6). O narra<strong>do</strong>r, circunscreven<strong>do</strong>-se à personagem, foca<br />
<strong>de</strong> imediato as sequelas que o indiscreto comentário <strong>de</strong> Lopo faz <strong>de</strong>flagrar.<br />
Ficamos a saber que Baltazar balbucia: «Oh minha senhora...»<br />
ção <strong>de</strong> menina. e convém sublinhar que faz to<strong>do</strong> o senti<strong>do</strong> que o qualificativo <strong>de</strong> menina<br />
oscile consoante seja emprega<strong>do</strong> pelo pai ou pelo primo. Para Lopo <strong>de</strong> Sampaio, pressente-se<br />
que tenha um senti<strong>do</strong> próximo <strong>do</strong> seu significa<strong>do</strong> próprio, isto é, que disponha<br />
<strong>de</strong> um valor semântico análogo ao <strong>de</strong> criança; tratan<strong>do</strong>-se <strong>de</strong> Baltazar, a palavra adquire<br />
um senti<strong>do</strong> diverso, que é o da criatura inocente e angelical, senti<strong>do</strong> em perfeita sintonia<br />
com o código sentimental romântico <strong>de</strong> que comunga o fidalgo <strong>de</strong> Olarias.