15.04.2013 Views

o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho

o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho

o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

72 diAcríticA<br />

como pão vivo, / bebi-a como água crua, / (…) / o reino por essa linha<br />

lírica em que aprendi a morrer, / e porque estou morren<strong>do</strong> apren<strong>do</strong> /<br />

a unida<strong>de</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>» (582). Duas mortes distintas separam o passa<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong> presente, a energia da vida separa-se da passivida<strong>de</strong> da ida<strong>de</strong>: pela<br />

primeira se entregou furiosamente per<strong>de</strong>n<strong>do</strong>-se, pela segunda encontra-se<br />

com «essa linha lírica», on<strong>de</strong> apren<strong>de</strong> a morrer.<br />

O alinhamento <strong>do</strong>s poemas encaminha-nos para um testamento<br />

ou memoran<strong>do</strong> final, no qual o poeta enumera os seus últimos pedi<strong>do</strong>s<br />

e faz as recomendações práticas <strong>de</strong> um mortal que receia não ser<br />

trata<strong>do</strong> <strong>de</strong> forma a<strong>de</strong>quada nos momentos imediatamente anteriores<br />

ao funeral: «não chamem logo as funerárias, / cortem-me as veias <strong>do</strong>s<br />

pulsos pra que me saibam bem morto» (614). O poeta insiste na necessida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> que se certifiquem da sua morte antes <strong>de</strong> ser enterra<strong>do</strong>. No<br />

entanto, quase a terminar o poema, esclarece que «quem morre morre<br />

só, morre <strong>de</strong> amor e <strong>de</strong>samor, ou muito <strong>de</strong>ntro ou muito fora» (615),<br />

permitin<strong>do</strong> que se interprete esta morte num senti<strong>do</strong> metafórico e<br />

mais abrangente <strong>do</strong> que a morte física. Po<strong>de</strong> ser a morte pela solidão,<br />

pelo aban<strong>do</strong>no, pelo esquecimento, mas também o morrer <strong>de</strong> amor<br />

ou ainda a perda <strong>de</strong> força anímica, a perda <strong>de</strong> vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> viver ou<br />

simplesmente a morte física.<br />

Depois <strong>do</strong> pedi<strong>do</strong> <strong>de</strong> atenção, lêem-se outros textos que não<br />

assumem <strong>de</strong> forma tão clara o tema da morte física. O excerto que se<br />

segue é exemplo <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> como, perante a percepção da morte, age<br />

o espírito, salvaguardan<strong>do</strong> o que po<strong>de</strong> ser liberta<strong>do</strong> das garras físicas<br />

da morte.<br />

entre papel e fôgo [sic] linha a linha recosi<strong>do</strong>s num ca<strong>de</strong>rno portátil até on<strong>de</strong>,<br />

<strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za e turvação nos <strong>de</strong><strong>do</strong>s,<br />

e então, algures, um nó tão físico mas que,<br />

passa<strong>do</strong> à mente,<br />

<strong>do</strong>ía em tu<strong>do</strong>,<br />

que em língua era: a morte a trabalhar entre recto e uretra e,<br />

mexen<strong>do</strong> por aí,<br />

trabalhava na alma das palavras,<br />

punha-as em teorema, <strong>de</strong>monstração inexplicável, lei<br />

externa à <strong>do</strong>r, à espera <strong>de</strong><br />

como ela vem célula a célula, como <strong>de</strong>vora<br />

o idioma, a gaya scienza, o quotidiano, a escrita,<br />

(…)<br />

já o espírito encontra a forma,<br />

(…)<br />

o ar inteiro meti<strong>do</strong> pela noite <strong>de</strong>ntro, e que ébrio,<br />

redivivo (617)

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!