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o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho

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276 diAcríticA<br />

No primeiro capítulo, ocorre o aci<strong>de</strong>nte com a liteira, sem o<br />

qual o fidalgo <strong>de</strong> Ansiães e a filha não ficariam reti<strong>do</strong>s no Marão à<br />

mercê <strong>de</strong> socorro e, em consequência disso, sem o qual não teriam<br />

si<strong>do</strong> ampara<strong>do</strong>s por Baltazar e por D. José. O narra<strong>do</strong>r aproveita a<br />

ocasião para sugerir uma impressão <strong>de</strong>sfavorável <strong>de</strong> Mécia. A queda<br />

da liteira provoca duas consequências imediatas. O joelho esnoca<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />

Lopo <strong>de</strong> Sampaio e a «ombreira refegada <strong>do</strong> corpete <strong>de</strong> cetim cor-<strong>de</strong>-<br />

-laranja». Mécia revela então uma postura algo surpreen<strong>de</strong>nte: entre<br />

uma ombreira <strong>de</strong> cetim esfarrapada e os gemi<strong>do</strong>s <strong>do</strong> pai, ainda que<br />

exagera<strong>do</strong>s, é certo 1 , ficamos a saber que a moça lastima o teci<strong>do</strong> danifica<strong>do</strong><br />

em <strong>de</strong>trimento <strong>do</strong> joelho feri<strong>do</strong>. O pormenor é assaz revela<strong>do</strong>r.<br />

Põe-nos, à partida, <strong>de</strong> sobreaviso sobre a i<strong>do</strong>neida<strong>de</strong> da personagem.<br />

e o que quebra o silêncio da filha <strong>do</strong> fidalgo tem a ver, em gran<strong>de</strong><br />

parte, com a incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> a morgada <strong>do</strong>minar e reprimir um traço<br />

da sua ín<strong>do</strong>le que escapa ao <strong>do</strong>mínio da vonta<strong>de</strong>. Trata-se <strong>do</strong> seu<br />

instintivo, e logo irreprimível, me<strong>do</strong> das situações que envolvam perigo<br />

ou algum risco, me<strong>do</strong> muito presente nestas primeiras páginas da<br />

narrativa 2 .<br />

Não será impertinente, em abono da personagem, observar que<br />

os distúrbios que a subjugam não são totalmente infunda<strong>do</strong>s ou in<strong>de</strong>vi<strong>do</strong>s.<br />

A embaraçosa posição <strong>do</strong>s viajantes expõe-nos, sem dúvida, à<br />

hipótese flagrante <strong>de</strong> riscos. Todavia, convém igualmente dizer que já a<br />

mesma atenuante não é aplicável ao me<strong>do</strong> que a moça ressente quan<strong>do</strong><br />

é instigada a sentar-se no arção <strong>do</strong> cavalo <strong>de</strong> Baltazar, animal «mansíssimo<br />

e [...] afeito a conduzir senhoras...» (sm. 10), como faz questão<br />

<strong>de</strong> sublinhar o fidalgo <strong>de</strong> Olarias. Ao convite <strong>de</strong> Baltazar, objecta:<br />

«– Tenho me<strong>do</strong>...» (ibi<strong>de</strong>m). este me<strong>do</strong>, bastante mais inexplicável, não<br />

é sem lembrar outro <strong>de</strong> maior envergadura e que consiste no pânico<br />

1 Com certeza, a crer no que nos refere o narra<strong>do</strong>r, que os gemi<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Lopo <strong>de</strong><br />

Sampaio pecam por excesso e não serão, nessa medida, merece<strong>do</strong>res <strong>de</strong> um tipo <strong>de</strong><br />

atenção semelhante à <strong>do</strong> animal moribun<strong>do</strong> que, esse sim, sofre a valer. No entanto,<br />

nada nos indica que Mécia <strong>de</strong>sse conta <strong>do</strong> exagero, até porque a sua concentração, por<br />

essa altura, se achava direccionada para a ombreira <strong>do</strong> corpete <strong>de</strong> cetim estraga<strong>do</strong>.<br />

2 em tais cenários, Mécia dispensa o recolhimento e manifesta sem contenção<br />

o pavor que a assalta. entra em pânico perante a possibilida<strong>de</strong>, referida pelo pai, <strong>de</strong><br />

ficarem reti<strong>do</strong>s no Marão (cf. sm. 7), ou diante da perspectiva <strong>de</strong> ladrões ou <strong>de</strong> lobos<br />

(cf. i<strong>de</strong>m, 8-9). Daí que não cause surpresa a sua pronta preferência em se <strong>de</strong>slocar,<br />

mesmo a pé até à al<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> Ovelhinha, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que o sacrifício lhe permita livrar-se <strong>de</strong><br />

ladrões e <strong>de</strong> lobos (cf. ibi<strong>de</strong>m). e após jantar com os primos e o pai numa estalagem<br />

aco<strong>de</strong> à sugestão <strong>de</strong> Baltazar para que partissem <strong>de</strong>sta forma: «– Sim... sim... – disse<br />

D. Mécia. – Vamos daqui embora, que este sítio faz me<strong>do</strong> à gente.» (i<strong>de</strong>m, 40).

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