15.04.2013 Views

o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho

o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho

o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

em que línguA escreVe <strong>Herberto</strong> Hel<strong>de</strong>r?<br />

167<br />

essa morte, é no corpo que a vemos chegar, particularmente num<br />

<strong>do</strong>s últimos poemas <strong>do</strong> livro, quase antes <strong>do</strong> fecho, quan<strong>do</strong> ela começa<br />

a trabalhar aquele corpo estrito que vários poemas nos mostram escreven<strong>do</strong><br />

(por vezes com a mesa, ou o ca<strong>de</strong>rno portátil, ou a bic cristal<br />

preta). Mas é esse corpo e também não é esse corpo, porque, no livro,<br />

sempre o vemos muda<strong>do</strong> noutro, não estrito mas escrito. Se bem<br />

que o poema a que me refiro vá até «às portas acá da noite avon<strong>de</strong>»,<br />

a verda<strong>de</strong> é que ele acaba por fechar com a palavra «redivivo» (617).<br />

em A faca não corta o fogo, a condição idiomática da língua<br />

<strong>de</strong>sta poesia acaba por implicá-la nesta ambivalência <strong>do</strong> corpo:<br />

e tu, Canção, se alguém te perguntasse como não morro,<br />

respon<strong>de</strong>-lhe que porque<br />

morro,<br />

também por política rítmica, outro, louco<br />

da força que lhe dava a língua,<br />

queria tu<strong>do</strong>, até que ficasse mu<strong>do</strong>,<br />

e outro ainda dizia que o tempo venera a língua,<br />

e neste mistério que como não morro<br />

que porque morro, escrevo<br />

a linha que me custa o reino e não passa pela agulha,<br />

e embora as frutas se movam nas colinas,<br />

estou a morrer a língua que não é curda nem inglesa,<br />

a morrê-la ao rés das unhas e da boca<br />

(582-3)<br />

A sintaxe <strong>do</strong> Português não contempla este uso transitivo <strong>do</strong> verbo<br />

morrer que, embora seja intransitivo, tem aqui a língua como complemento<br />

directo. É uma construção «assintáctica», um acor<strong>do</strong> semântico,<br />

um «nexo estilístico» em que o idioma <strong>de</strong>sta poesia se <strong>do</strong>bra si<br />

mesmo, pensan<strong>do</strong> a morte. Mas que o faça assim, voltan<strong>do</strong> às palavras<br />

<strong>de</strong> Camões, talvez diga tu<strong>do</strong> sobre o que possa ser morrer (e não<br />

morrer) a língua. Pensa-se numa passagem <strong>de</strong> «Retratíssimo…»:<br />

«(...) qualquer coisa no retrato ressalta / <strong>do</strong> espírito <strong>de</strong> um homem<br />

que foi assassina<strong>do</strong>. / Há um punhal implícito. / Sangue <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bra<strong>do</strong>. /<br />

A ca<strong>de</strong>ira é alta e existe <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> fogo. (...) / (181)».<br />

Dentro <strong>do</strong> fogo. Precisarei <strong>de</strong> voltar ao título e à epígrafe <strong>do</strong> livro?<br />

– A faca não corta o fogo, não se po<strong>de</strong> cortar o fogo com uma faca.<br />

Num poema concebi<strong>do</strong> como um diálogo com <strong>Herberto</strong> Hel<strong>de</strong>r, Ruy<br />

Belo fazia-lhe, há muitos anos, uma pergunta que agora se po<strong>de</strong>ria<br />

voltar a fazer: «era <strong>de</strong>pois da morte ou era antes da morte? / Mas<br />

haveria morte verda<strong>de</strong>iramente?» (Belo, 2000: 218).

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!