o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
118 diAcríticA<br />
virtu<strong>de</strong> da criatura «toda aberta e externa». Por que sim? Porque é no<br />
texto que a menina se faz e faz com que eu venha a ter «setenta e sete»<br />
ao, relacionan<strong>do</strong>-me com o poeta e toman<strong>do</strong> seu lugar, ou melhor,<br />
buscan<strong>do</strong> ter «o entendimento <strong>de</strong>» seus «versos», <strong>de</strong>sejá-la intensamente.<br />
Mas o que eu <strong>de</strong>sejo não é a menina, pois nem a conheço<br />
extraversos. Talvez ela nem exista fora da instância poemática – apesar<br />
<strong>de</strong> ser fora da instância poemática, sei, sabemos to<strong>do</strong>s, que a beleza<br />
erótica existe, e a beleza erótica é, como já apontei, assunto <strong>do</strong> poema.<br />
De to<strong>do</strong> mo<strong>do</strong>, o que eu <strong>de</strong>sejo não é a menina (ou melhor, não é essa<br />
menina), é o poema. então, sim (apesar <strong>de</strong> eu ter acaba<strong>do</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r<br />
o não), existe uma inegável imbricação entre o feminino juvenil e o<br />
trabalho da escrita, labora<strong>do</strong>r <strong>de</strong> beleza.<br />
Cito <strong>de</strong> novo o verso-chave (mais <strong>de</strong> abertura que <strong>de</strong> entendimento,<br />
mas também <strong>de</strong> entendimento) d’A faca não corta o fogo: «até<br />
que Deus é <strong>de</strong>struí<strong>do</strong> pelo extremo exercício da beleza» (i<strong>de</strong>m, 535).<br />
Os senti<strong>do</strong>s advin<strong>do</strong>s da «palavra Deus» (i<strong>de</strong>m, 595) na poesia <strong>de</strong><br />
<strong>Herberto</strong> Hel<strong>de</strong>r são muitos. O sintagma recém-escrito está entre<br />
aspas porque é uma citação ao mesmo A faca não corta o fogo, <strong>de</strong>ntro<br />
dum poema que já foi o inédito <strong>de</strong> ou o poema contínuo, não a poesia<br />
completa <strong>de</strong> 2004, mas a súmula <strong>de</strong> 2001. Deus, em <strong>Herberto</strong>, po<strong>de</strong><br />
acusar um imenso po<strong>de</strong>r, vital, atuante, «que Deus funciona na sua<br />
gloria electrónica» (i<strong>de</strong>m, 565), verso também <strong>de</strong> um poema presente<br />
n’A faca não corta o fogo. Um Deus possui<strong>do</strong>r <strong>de</strong> «glória» é po<strong>de</strong>roso,<br />
mas seu po<strong>de</strong>r necessita fazer-se «palavra» e/ou «ví<strong>de</strong>o» («o mun<strong>do</strong><br />
nasce <strong>do</strong> ví<strong>de</strong>o» (ibi<strong>de</strong>m)) para que, <strong>de</strong> maneira «electrónica», portanto<br />
em extremo movimento, exista enquanto algo que merece o nome que<br />
tem. Logo, o po<strong>de</strong>r pertence é ao poema, não a Deus.<br />
Mas há o contrário disso, há um Deus que é opressão e não<br />
liberda<strong>de</strong>, e, como o po<strong>de</strong>r pertence é ao poema, não a Deus, que se<br />
<strong>de</strong>strua a tirania e o tirano. Ocorre-me o verso <strong>de</strong> abertura <strong>de</strong> os selos,<br />
«Será que Deus não consegue compreen<strong>de</strong>r a linguagem <strong>do</strong>s artesãos?»<br />
(i<strong>de</strong>m, 441), e ocorre-me que, no poema a que me <strong>de</strong>dico neste<br />
ensaio, Deus não existe: «<strong>de</strong> ver a Deus se / houvesse», pois não há.<br />
Do mesmo mo<strong>do</strong> que é humano <strong>de</strong>sejar, aos «setenta e sete», uma<br />
menina <strong>de</strong> «catorze», talvez seja mais humano a <strong>de</strong>sobediência que<br />
a sujeição, talvez seja mais humano «perguntar ao Demónio se Deus<br />
existe» (Hel<strong>de</strong>r, 2006: 160). É por essas e outras que Silvina Lopes<br />
afirma, ten<strong>do</strong> <strong>Herberto</strong> como assunto, que o «poema (...) é humano<br />
na sua dimensão <strong>de</strong>moníaca, aquela em que (...) o humano e o divino<br />
comunicam» (Lopes, 2003: 19).