o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
A FACA NÃO CORTA O FOGO: conteXtos Poéticos <strong>de</strong> umA biogrAfiA<br />
mexen<strong>do</strong> os <strong>de</strong><strong>do</strong>s nas costuras <strong>de</strong> sangue entre as placas <strong>do</strong> cabelo ru<strong>de</strong>,<br />
rútilo cabelo e o sangue que suporta tanta rutilação, tanta<br />
beltà, beauty, que beleza! (578-579)<br />
O «real quotidiano» da pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> jamais foi tema da<br />
poesia <strong>de</strong> <strong>Herberto</strong> Hel<strong>de</strong>r. Des<strong>de</strong> que começou a escrever, o poeta<br />
manteve a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se elevar <strong>de</strong>sse quotidiano e <strong>do</strong> quotidiano<br />
que <strong>do</strong>mina a arte contemporânea que, segun<strong>do</strong> as suas palavras, é<br />
<strong>de</strong>masia<strong>do</strong> pobre para que lhe interesse. Repudia o real <strong>do</strong> quotidiano<br />
e distingue-se <strong>de</strong>le ao predispor-se a falar «<strong>de</strong> outra ferida, outra / <strong>do</strong>r,<br />
outra interpretação <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, outro amor <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, / outro tremor».<br />
É evi<strong>de</strong>nte que as preocupações <strong>do</strong> poeta vão para lá da realida<strong>de</strong> imediata,<br />
até porque as feridas da socieda<strong>de</strong> contemporânea <strong>do</strong> consumismo,<br />
<strong>do</strong> he<strong>do</strong>nismo, <strong>do</strong> igualitarismo, da superficialida<strong>de</strong> não interessam<br />
ao poeta. Há outra ferida, outra <strong>do</strong>r, outro mun<strong>do</strong> (cf. Hel<strong>de</strong>r,<br />
1994) na sua obra e em particular neste livro e só esses lhe interessam,<br />
por aí encontrará o poeta a beleza que o fere, que o perturba e eleva,<br />
entre as «costuras <strong>de</strong> sangue» e o «rútilo cabelo».<br />
A noção <strong>de</strong> beleza sofreu alterações significativas ao longo <strong>do</strong>s<br />
tempos. Na socieda<strong>de</strong> contemporânea, a beleza passou a variar mais<br />
em função <strong>do</strong> sujeito e menos <strong>do</strong> objecto. Também em arte a beleza<br />
<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> muitas vezes <strong>de</strong> circunstâncias estranhas ao fenómeno artístico,<br />
passa a estar mais i<strong>de</strong>ntificada com as modas, com a economia,<br />
com a comunicação <strong>de</strong> massas, fican<strong>do</strong> sujeita a variações e permeável<br />
ao tempo. Para além da arte, toda a construção humana é <strong>de</strong>terminada<br />
também pela estética; os cria<strong>do</strong>res <strong>de</strong> objectos <strong>do</strong> quotidiano investem<br />
na componente estética, porque passam a consi<strong>de</strong>rá-la uma mais valia<br />
distintiva. esta opção acaba por retirar à beleza a sua relevância como<br />
atributo <strong>de</strong> objectos únicos, a arte passa a ser requisito indispensável<br />
na construção <strong>de</strong> objectos em série. Não é, com toda a certeza, esta a<br />
beleza que procura, <strong>de</strong> forma tão persistente, <strong>Herberto</strong> Hel<strong>de</strong>r, na sua<br />
poesia.<br />
eles dizem que a beleza per<strong>de</strong>u a aura, e eu não percebo, creio<br />
que é um tema geral da crítica académica: <strong>de</strong>ssacralização, etc., mas<br />
tenho tão pouco tempo, eis o que penso:<br />
décimo quarto piso da luz 10 e, no tôpo, a, tècnicamente [sic] <strong>de</strong>finida, lucarna,<br />
[que é por on<strong>de</strong> se faz com que a luz se faça,<br />
10 «décimo quarto piso da luz» i<strong>de</strong>ntifica simbolicamente o espaço ocupa<strong>do</strong> pela<br />
«catorzinha» (548).<br />
77