15.04.2013 Views

o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho

o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho

o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

262 diAcríticA<br />

tu<strong>do</strong> formas <strong>de</strong> fugir dali, <strong>de</strong> reatar a vida que <strong>de</strong>ixou suspensa, que<br />

está <strong>de</strong> alguma maneira suspensa. É por isso que nas cartas <strong>de</strong> guerra,<br />

e sobretu<strong>do</strong> nas cartas escritas às mulheres ou namoradas, a guerra<br />

não chega a ser a matéria central que as ocupa em termos <strong>de</strong> <strong>de</strong>scrição<br />

(e não é apenas a censura que o impe<strong>de</strong>). Já basta que a guerra seja<br />

a causa <strong>de</strong> essas cartas existirem e serem necessárias como sobrevivência.<br />

Claro que as cartas <strong>de</strong>ixam ver alguma coisa da guerra. Mas<br />

no caso <strong>de</strong> ALA, se queremos saber mais sobre a guerra, temos <strong>de</strong> ir<br />

aos seus romances. Como em outros temos <strong>de</strong> ir às memórias escritas<br />

ou aos testemunhos orais. Isto é, àquilo que é conta<strong>do</strong> <strong>de</strong>pois, algum<br />

tempo <strong>de</strong>pois ou até muito tempo <strong>de</strong>pois, quan<strong>do</strong> a distância não é<br />

um instrumento <strong>de</strong> sobrevivência imediata mas uma possibilida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> pensamento. Assim, estas cartas são, fundamentalmente, cartas<br />

<strong>de</strong> amor. O contexto da guerra exacerba o sentimento da separação,<br />

ameaça a relação, <strong>de</strong>soculta a ambiguida<strong>de</strong> que sempre atravessa<br />

to<strong>do</strong>s os amores, obriga a ir mais fun<strong>do</strong>, a essa zona <strong>de</strong> <strong>de</strong>samparo<br />

em que a própria pessoa se assusta ao reconhecer a força <strong>do</strong>s seus<br />

vínculos – porque o que salva no amor, sabemo-lo bem e numa guerra<br />

sabe-se ainda mas aflitamente, o que salva no amor, que é o outro<br />

existir, po<strong>de</strong>-nos ser tira<strong>do</strong> a qualquer momento.<br />

Cartas <strong>de</strong> amor, portanto. Não só, mas sobretu<strong>do</strong>, e envolven<strong>do</strong><br />

tu<strong>do</strong> o resto <strong>de</strong> que também se fala – mas antes <strong>de</strong> mais, cartas <strong>de</strong><br />

amor. Isto para dizer que o aviso pessoano é aqui imperativo: todas as<br />

cartas <strong>de</strong> amor são ridículas, mas afinal ridículo é quem nunca escreveu<br />

cartas <strong>de</strong> amor. Cartas <strong>de</strong> amor que são, vou dizê-lo assim, legítima<br />

<strong>de</strong>fesa contra a guerra. A mais íntima, mais nua, mais frágil legítima<br />

<strong>de</strong>fesa contra a guerra. Cartas <strong>de</strong> amor que são uma forma <strong>de</strong> religião<br />

sem <strong>de</strong>us, como <strong>de</strong> alguma forma ALA o <strong>de</strong>ixa enten<strong>de</strong>r, que implicam<br />

igualmente recolhimento, ritual, i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> este mun<strong>do</strong> po<strong>de</strong>r ser em si<br />

mesmo um outro mun<strong>do</strong>.<br />

Neste senti<strong>do</strong>, «o resto é nosso» com que as filhas terminam o<br />

prefácio permite uma outra leitura para além daquela mais óbvia,<br />

e justa na sua referencialida<strong>de</strong>, que é o <strong>de</strong> <strong>de</strong>licadamente afirmar o<br />

direito da sua privacida<strong>de</strong> se manter privada. Neste outro senti<strong>do</strong>,<br />

«o resto é nosso» dirá aquela parte em que o entendimento <strong>do</strong> amor<br />

<strong>do</strong>s outros é feito a partir <strong>do</strong> entendimento <strong>do</strong> amor que nós próprios<br />

alguma vez sentimos, e <strong>de</strong> como isso faz sempre <strong>de</strong>sequilibrar o que<br />

temos para dizer sobre todas as coisas. Porque as coisas à luz <strong>do</strong> amor<br />

são um mun<strong>do</strong> ligeiramente diferente sem <strong>de</strong>ixarem <strong>de</strong> ser este mun<strong>do</strong>,<br />

são precisamente um resto que é nosso, a legítima <strong>de</strong>fesa contra tu<strong>do</strong>

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!