o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
A FACA NÃO CORTA O FOGO: conteXtos Poéticos <strong>de</strong> umA biogrAfiA<br />
O poema seguinte vem reforçar a função essencial da escrita,<br />
nesta relação com a vida <strong>de</strong>terminada pelo tempo, <strong>de</strong>stacan<strong>do</strong>, no<br />
entanto, a dificulda<strong>de</strong> em combinar a vida com a canção, a mão com<br />
a obra, o encontro amoroso com a frase que «brilha / um relâmpago<br />
apenas»: «tão curta canção para tamanha vida: / aloés por on<strong>de</strong> o chão<br />
respira, / e a mão que brilha quan<strong>do</strong> os toca, / tão pouca mão em tão<br />
nascida obra / (…) / na folha escura on<strong>de</strong> cada frase brilha / um relâmpago<br />
apenas antes <strong>de</strong> ser escrita» (554).<br />
É chega<strong>do</strong> um novo momento <strong>do</strong> fio narrativo. Surgem diversos<br />
elementos que contribuem para a i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong> alguns senti<strong>do</strong>s da<br />
procura: «¿em que te hás-<strong>de</strong> tornar, em que nome, com que / potência<br />
e inclinação <strong>de</strong> cabeça? / (…) / o caos alimenta a or<strong>de</strong>m estilística: /<br />
iluminação, / razão <strong>de</strong> obra <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro para fora / – mais um estio até<br />
que a força da fruta remate a forma» (556). A interrogação formulada<br />
subenten<strong>de</strong> a existência <strong>do</strong> caos e a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma or<strong>de</strong>m, ambos<br />
se tornam essenciais para que haja sobreviventes. A forma <strong>de</strong>pura-se<br />
com o tempo que passa, com a ida<strong>de</strong>, com o que brota «<strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro para<br />
fora», a intensida<strong>de</strong> constrói-se na obscurida<strong>de</strong>, para surgir como<br />
epifania, «a laranja, com que força aparece <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro para fora» (558).<br />
A tensão cria-se no fio que aproxima o obscuro e o claro, o caos e a<br />
or<strong>de</strong>m, o interior e o exterior, o visível e o invisível (cf. 563-564).<br />
A poesia <strong>de</strong> <strong>Herberto</strong> Hel<strong>de</strong>r, quan<strong>do</strong> tem como objectivo esclarecer<br />
pontos <strong>de</strong> vista, perspectivas sobre a realida<strong>de</strong> ou sobre a própria<br />
poesia, é, neste livro, menos irónica e mais directa e quotidiana. 6<br />
O poeta encontra-se num momento pedagógico <strong>de</strong> afirmação menos<br />
esquiva. entra nos espaços comuns e como que inicia o leitor pelos<br />
caminhos da transmutação, «eu ouço na cozinha a canção pura e precária,<br />
/ e <strong>de</strong>bruço-me sobre a panela, / que sôpro [sic] no caos da casa!»<br />
(567) e aí se dá «o milagre quotidiano da transmutação <strong>do</strong>s corpos: /<br />
porque é glorioso trazer, <strong>de</strong> minas da terra (…) / os elementos, e trabalhá-los,<br />
e a po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> / plantas e óleos, / atingir a unida<strong>de</strong> que alguém<br />
atinge com o seu nome» (568).<br />
Perante a percepção forte da irreversibilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> tempo, esta<br />
poesia encontra-se mais atenta às pequenas coisas, que na obra <strong>de</strong><br />
<strong>Herberto</strong> Hel<strong>de</strong>r são sempre enormes, incan<strong>de</strong>scentes e fulgurantes.<br />
e se a gran<strong>de</strong>za e a plenitu<strong>de</strong> podiam vir com Deus, (recor<strong>de</strong>-se que<br />
este substantivo continua também a estar muito presente neste livro),<br />
é com o sagra<strong>do</strong> (cf. Silva, 2004) que o poeta se torna mais assertivo,<br />
6 esta perspectiva será <strong>de</strong>senvolvida nas próximas páginas.<br />
69