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o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho

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318 diAcríticA<br />

a maldita poesia, e <strong>do</strong> qual se sente como que excomunga<strong>do</strong>. Aliás, na parte mais<br />

visual <strong>do</strong> poema – o segun<strong>do</strong> verso da segunda estrofe – nem sequer falta a imagem<br />

<strong>do</strong> sujeito como possesso («a retorcer-me em pasmos <strong>de</strong> agonia»). quem o vê assim<br />

é o leitor, disfarça<strong>do</strong> <strong>de</strong> Poesia, e a quem, em verda<strong>de</strong>, se dirigem os apelos <strong>do</strong><br />

poeta maldito, ou melhor, a poesia é como que uma máscara que tanto se <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bra<br />

na figura <strong>do</strong> leitor como representa o poeta maldito. O poema termina com uma<br />

<strong>de</strong>sesperada tentativa <strong>de</strong> expulsão <strong>do</strong> <strong>de</strong>mónio da Poesia («Fora <strong>de</strong> mim, ó Poesia!<br />

Fora»). e antes <strong>de</strong>sta exorcização, um aspecto a relevar: a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que a poesia<br />

<strong>de</strong>semboca em duas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s dificilmente conjugáveis ou, à primeira vista,<br />

discrepantes, excepto pelo la<strong>do</strong> da marginalida<strong>de</strong> social (ou, então, pelo la<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong> messianismo e da utopia): a <strong>de</strong> Cristo e a <strong>do</strong> louco («faze<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> Cristos e <strong>de</strong><br />

loucos»). Se o elemento copulativo «e» <strong>de</strong>sempenha, como suce<strong>de</strong> por vezes na<br />

lírica trova<strong>do</strong>resca, a função <strong>de</strong> permitir que um <strong>do</strong>s lexemas interprete o outro,<br />

parece <strong>de</strong>scabi<strong>do</strong> concluir que to<strong>do</strong>s os Cristos são loucos e vice-versa, ou assumir<br />

que o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> Cristo é equivalente a <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>ns mentais. A convocação da figura<br />

<strong>de</strong> Cristo obe<strong>de</strong>ce a um imperativo <strong>de</strong> vitimização. Acresce que é curioso verificar<br />

que quem faz Cristos (e loucos) é quem menos probabilida<strong>de</strong> teria <strong>de</strong> os fazer.<br />

Cristo que significa a verda<strong>de</strong> das verda<strong>de</strong>s («em verda<strong>de</strong> vos digo») resulta <strong>de</strong> uma<br />

poesia que aqui, semelhante ao <strong>de</strong>mónio, é o supremo <strong>do</strong>s enganos («engano <strong>do</strong>s<br />

enganos»). Seja como for, temos sempre a expressão <strong>de</strong> uma insuportável marginalida<strong>de</strong><br />

social e como causa <strong>de</strong>ssa marginalida<strong>de</strong> a fatal Poesia a atormentar um<br />

sujeito. e, com isso, temos a afirmação <strong>do</strong> estatuto ímpar <strong>de</strong>sse sujeito como poeta<br />

(o homem fatal). e isto não obsta a que o poema, ao fim e ao resto, também não<br />

<strong>de</strong>ixe <strong>de</strong> ser uma incitação narcísica à visão <strong>de</strong>sse poeta maldito. e ainda é outra<br />

coisa: uma <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> poesia enquanto sublimação mística.<br />

«Testamento» é o poema seguinte. Leia-se: «Porque vai a enterrar uma<br />

criança, / dêem-me um caixão branco, <strong>de</strong> menino. / e que não <strong>do</strong>bre, mas repique o<br />

sino, / pois reabri o coração à esperança. // Levem à cova amiga, em tar<strong>de</strong> mansa, /<br />

o <strong>de</strong>spojo <strong>do</strong> puro peregrino / dum mun<strong>do</strong> traiçoeiro e assassino / que o traspassou<br />

<strong>de</strong> inconcebível lança. // Para que saiba a morte quem eu sou, / quero nas mãos o<br />

ferro dum Avô / que se haja bati<strong>do</strong> contra os mouros. // Também, se julgue a Pátria<br />

que o mereça, / ela po<strong>de</strong> entrançar-me na cabeça / uma silva <strong>de</strong> víboras... e louros. //<br />

(p. 350). O incipit apresenta uma relação <strong>de</strong> causalida<strong>de</strong> semântica («Porque»), o<br />

que significa que a oração principal não é aquela, mas, sim, a que se lhe segue.<br />

Trata-se <strong>de</strong> uma inversão <strong>de</strong>stinada a conce<strong>de</strong>r relevo ao segun<strong>do</strong> verso, o que nos<br />

fornece a imagem profundamente disfórica <strong>de</strong> um funeral <strong>de</strong> criança. Não parece<br />

oferecer dúvida que a imagem da criança sirva um duplo propósito. Por um la<strong>do</strong>,<br />

significa um retorno à infância, quer dizer, à natureza profunda e imaculada/<br />

inocente <strong>do</strong> sujeito (daí também o branco da urna), quer dizer, este recupera <strong>de</strong><br />

si uma infância, ao cabo e ao resto, irrecuperável (morta); por outro, a imagem<br />

muito perturbante <strong>de</strong> «um caixão branco, <strong>de</strong> menino» (a vírgula impõe uma cesura<br />

que sublinha o facto bem chocante <strong>de</strong> se tratar <strong>do</strong> cadáver <strong>de</strong> uma criança) não<br />

é sem consequência: contribui para avolumar a <strong>de</strong>finição (metafórica) <strong>do</strong> sofrimento.<br />

Como é evi<strong>de</strong>nte, a alvura <strong>do</strong> caixão serve também um terceiro propósito,<br />

que é o <strong>de</strong> antecipar a esperança contida no último verso da estrofe e que só ganha<br />

senti<strong>do</strong> a partir <strong>do</strong> primeiro verso da estrofe seguinte. esperança, porque a «cova» é

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